"O Governo tem cortado no rol de beneficiados do Estado. Corta-lhes nas pensões excepcionais e nos subsistemas de Segurança Social dotados de regimes de comparticipações muito acima do regime geral.
Eu senti entre os jornalistas tanto júbilo por estas medidas como entre os cidadãos em geral. Nalguns casos, os jornalistas - eles próprios - se armaram em justiceiros e procuraram denunciar os privilegiados. Fizeram-se manchetes sobre políticos, funcionários e gestores públicos. Foram feitas críticas acesas contra estes sorvedouros legais do escasso dinheiro do Estado. Eu própria vociferei contra as benesses.###
Neste frenesim, os jornalistas calaram cobardemente - incluindo eu - os seus próprios benefícios no sistema de saúde. Os jornalistas usufruem de um regime de excepção - a Caixa de Previdência dos Jornalistas - que lhes dá das mais elevadas comparticipações nos serviços de saúde.
Utentes do Serviço Nacional de Saúde, os jornalistas podem recorrer ao sector privado e são ressarcidos das despesas, nalguns casos pela totalidade (v.g., cirurgias). Um caso que fala por si: um cidadão normal que precise de óculos recebe do Estado 75 cêntimos pela armação e 20 cêntimos por cada lente; um jornalista pode comprar a dita armação e as respectivas lentes sem limite de preço e recebe do Estado 80% da despesa (há armações que chegam a custar 5 mil euros).
Calaram-se os jornalistas porque sempre pensaram que o Governo não teria coragem para mexer nos privilégios da 'classe' que o 'fiscaliza'. Mas o Governo decidiu mesmo acabar com a dita Caixa de Previdencia dos Jornalistas já em Janeiro. Não creio que seja um gesto de coragem. A decisão foi baseada na presunção de que os jornalistas não iriam ter a coragem ou o desplante de criticar uma medida que, eles próprios, aplaudem noutros sectores.
Presunção errada. O Sindicato dos Jornalistas saiu em defesa do que classificou de 'património' jornalístico e, num manifesto que já recolheu mil assinaturas, justifica assim a manutenção dos privilégios para os profissionais da comunicação social:
'Jornadas (de trabalho) intensas e prolongadas e informalidade de horários, com fortes impactos na saúde e na qualidade de vida destes profissionais, como demonstra a significativa prevalência de stress e de doenças do foro cardíaco, desgaste rápido e até morte precoce. Esta situação agravou-se nos últimos anos com a crescente precariedade (do emprego), um extraordinário aumento dos níveis de exigência, polivalência e de disponibilidade'.
Quantos profissionais de outras áreas podiam subscrever este diagnóstico - e, não sendo jornalistas, estão excluídos do regime de excepção?.
Alguns dirigentes do Sindicato e alguns jornalistas que subscreveram o dito manifesto dizem-se de esquerda. Uma esquerda que defende o Serviço Nacional de Saúde universal, gratuito e exclusivamente público. E, pensava eu, igualitário.
Calámo-nos cobardemente. Porque foi bom enquanto durou - até para os que se batem pela igualdade. A partir de agora, porém, ficaria bem algum pudor."
(Paula Sá, comentário ao post A esfera pública; editado).