30.12.06

noutro lugar



Ao longo dos últimos anos, eu tenho vindo gradualmente a perder alguma consideração intelectual pelos autores que no século XX emergiram como os ícones do liberalismo. Refiro-me, no campo da economia que é o meu, a autores como Ludwig von Mises e Friedrich Hayek (líderes, em sucessão, da chamada Escola Austríaca), Milton Friedman (líder da Escola de Chicago), Murray Rothbard (líder da Escola Libertária), mas também Ayn Rand (fundadora da Escola Objectivista), ou mesmo Karl Popper (o pai do método científico moderno).###

Não se trata, obviamente, de lhes negar o grande estatuto intelectual que eles possuíam. O meu preferido, de entre todos, é Hayek. Trata-se, antes, de um certo desconforto perante os seus preconceitos. Na impossibilidade de enumerar aqui todas as fontes desse desconforto, limitar-me-ei a indicar apenas uma. Todos estes autores defenderam enfaticamente a primazia das instituições espontâneas - aquelas que são estabelecidas voluntariamente entre as pessoas -, em detrimento das instituições baseadas na força, e de que o Estado é o exemplo acabado.

Porém, ao procurar exemplos históricos para essas instituições - para além das empresas, as cooperativas, os sindicatos, as associações cívicas, etc. - devia ter-se imposto aos olhos destes liberais, como o exemplo por excelência, aquela instituição espontânea que é a mais duradoura de todas as instituições na nossa civilização, aquela que atravessou impérios e regimes políticos, democracias e ditaduras, pestes e outras catástrofes naturais, guerras civis e religiosas, até duas guerras mundiais - e ainda assim sobreviveu. Refiro-me à Igreja Católica.

E, no entanto, nunca, no meu conhecimento, estes defensores do liberalismo apontaram a Igreja Católica como um exemplo - na realidade, o exemplo de maior sucesso, a julgar pela sua longevidade - da classe de instituições que defendiam. Preconceito? Eu estou hoje convencido que sim. Basta observar que todos os liberais que citei - e que foram líderes ou fundadores das várias correntes do liberalismo no século XX - possuem uma característica comum: são judeus. A única excepção é Hayek que, não obstante, possuía também na família um ramo de origem judaica.

Não surpreende que, num século que foi caracterizado pela perseguição e a opressão aos judeus, por meras razões de sobrevivência do grupo, os judeus tivessem colocado um ênfase particular na liberdade e que, portanto, da tradição judaica emergissem os mais acérrimos defensores da liberdade que o século conheceu. Não surpreende sequer que, quando confrontados com a questão das suas convicções religiosas, eles se declarassem invariavelmente ou agnósticos ou ateus. Mas é precisamente por ter sido fruto de circunstâncias históricas particulares que eu estou hoje convencido que o liberalismo que eles representam não é mais do que um desvio da verdadeira tradição liberal. E que esta deve ser procurada noutro lugar.