1. O meu voto no referendo do aborto não me pertence. Entregá-lo-ei a quem me disser o que fará dele, caso concorde com o destino que lhe será dado. Lamentavelmente, até agora, só obtive explicações claras por parte do «não»: ficará tudo na mesma. Da parte do «sim», só a ideia da despenalização, quando, como é sabido, essa alteração poderá ser feita de várias maneiras e comportar diferentes consequências, nem todas elas, a meu ver, aceitáveis.
2. Devo dizer que sempre me inclinei para votar «sim». Por várias razões que fui, ao longo dos últimos meses, aqui expondo: parece-me que o aborto é, só pode ser, um problema de consciência individual, e que esta só pode manifestar-se sem ameaças legais; acredito que a lei em vigor mantém uma situação de hipocrisia social, porquanto o aborto é uma prática corrente na nossa sociedade, que só ocasionalmente, muito à portuguesa, é casuisticamente aplicada para servir de exemplo; porque conheço muitas raparigas e mulheres que já o fizeram, que sofreram e sofrem com isso, a quem jamais consideraria a hipótese de as castigar com uma sanção penal, ou propor que o Estado as investigasse. Sobre essa sanção, há que dizer que não colhe o argumento falacioso, diria mesmo hipócrita, utilizado pelos partidários do «não» de que a lei não se aplica e que nenhuma mulher está presa por ter abortado. Se esse é um argumento benévolo, mais o será então a revogação da lei. Todos sabemos, contudo, que não é isso que se pretende, antes se quer manter em vigor a ameaça da sanção, como forma de pressão psicológica e social. Ameaça imprópria, como todas as ameaças, de uma sociedade civilizada, diga-se. ###
3. O pior é que, para quem está inclinado a votar «sim», não existe um único «sim», desde logo porque o tratamento que lhe for dado por via legislativa e por decisão governamental poderá ser imensamente diferente. Eu passo a explicar.
Existem, pelo menos, dois tipos de «sim»: o «sim» À despenalização por se considerar o aborto um último recurso, assumido em estado de desespero consciente; e o «sim» como um simples direito fundamental da mulher ao seu corpo, exercido a expensas do Estado. Concordo com o primeiro, discordo do segundo, pelas razões que se seguem.
4. A primeira delas, é a de que o problema científico e filosófico de se saber se a mulher, pelo acto do aborto, está a dispor apenas de si, ou também da vida de outro, é praticamente insolúvel. Existem posições científicas, filosóficas e morais para sustentar uma e outra posição. Por conseguinte, nenhuma delas, por inconclusivas, ambíguas e reciprocamente refutáveis, deverá servir de fundamento a uma decisão legislativa sobre esta matéria.
5. A segunda, vai no sentido de considerar que o aborto só deve ser moral e legalmente suportável se se tratar de uma decisão livre e consciente da única pessoa que poderá, em última instância, efectivamente decidir: a grávida. Mas, para o poder ser, o Estado não poderá criar um sistema de desresponsabilização absoluta que transforme o aborto numa prática tão fácil e acessível como curar uma dor de cabeça ou uma constipação. Razão pela qual sugeri, ao longo das últimas semanas, que seria um erro incluir o aborto no SNS como acto médico gratuito. Este argumento, que o raciocínio básico do «sim» imediatamente qualificou como um «argumento económico», logo, desprezível, é mais de natureza moral e responsabilizadora, do que propriamente economicista (ainda que se o fosse não estaria a cometer qualquer incorrecção). Felizmente, o Dr. Mário Sousa, uma autoridade nesta e noutras matérias, adepto do «sim», deu-me razão.
6. Em terceiro lugar, considero de muito mau agouro que o governo nada tenha dito sobre a proposta da Drª Maria de Belém Roseira, sobre a criação de mecanismos de reflexão e de responsabilização para quem quiser abortar a expensas do Estado. É grave que um governo e um ministro da saúde tão envolvidos na campanha tenham ignorado essa proposta, que retiraria até ao «não» o seu principal argumento: o de pretenderem diminuir a efectiva prática do aborto, como evidentemente se concluirá de um sistema que aconselha, sugere alternativas e apoia quem está em dúvida. Por que motivo o governo não respondeu a uma interpelação de uma distinta militante e dirigente do partido que o apoia? Infelizmente, temo o pior: por pretender mesmo consagrar legalmente uma interrupção da gravidez irresponsável e sem qualquer acompanhamento médico, que não seja o do acto em si.
7. É, pois, necessário perceber que não existe apenas um «sim» e que as consequências da despenalização não são todas iguais: umas são aceitáveis, outras não o são É pena, diga-se de passagem, que os adeptos do «sim», num aggiornamento militante e pouco racional, não tenham querido explicar as consequências das suas eventuais diferenças, em vez de se terem agrupado em molhe numa argumentação de simples contraditório e de argumentos reflexivos pavlovianos («Oiço falar em penalização e em mulheres na cadeia, voto logo «sim»»). Perderam com isso e poderão bem vir a perder por isso.
8. Um liberal só dá o seu voto ao poder soberano em troca de explicações claras sobre o que este fará com ele. No caso do referendo do aborto, é uma falácia dos adeptos do «sim» dizer-se que vamos votar apenas a despenalização do acto até às 10 semanas. Não, não é verdade. Vamos votar, de facto, a despenalização, mas vamos autorizar um governo a regulamentar a prática do aborto. Sobre essa regulamentação, até agora o governo não disse nada. Em contrapartida, há dirigentes do PS a dizerem coisas completamente opostas, como a Drª Maria de Belém Roseira, com a qual concordo, e a Drª Edite Estrela, que já propôs que a futura legislação despenalizasse, de facto, o aborto para além das 10 semanas. Em que é que ficamos? O que fará este governo, e não os vindouros de direita ou de esquerda, mas este governo que decidirá a partir do dia 12 de Fevereiro, com o meu voto? Sem esse esclarecimento, não se poderá votar em algo que se desconhece. Porque, como dizem os liberais, só se troca alguma coisa por outra melhor. Quando, pura e simplesmente, se desconhece uma das duas alternativas possíveis, não se pode, por definição, escolher.
9. Em conclusão, direi que o meu voto (e julgo que o de muitos milhares de portugueses) continua disponível, e que se decidirá nos seguintes termos:
- Votarei «sim», se ouvir do governo português, que será quem vai ter a responsabilidade de regulamentar a decisão do referendo, uma atitude séria e consciente, que não transforme o aborto num acto irresponsável. Por outras palavras, votarei sim, caso o governo anuncie que acolherá a proposta da Drª Maria de Belém Roseira, ou outra que se lhe equivalha;
- Votarei não, se o governo português não esclarecer claramente que destino pretende dar ao meu voto.
10. Até ao dia 11 de Fevereiro continuarei, pacientemente, a aguardar que me esclareçam.
2. Devo dizer que sempre me inclinei para votar «sim». Por várias razões que fui, ao longo dos últimos meses, aqui expondo: parece-me que o aborto é, só pode ser, um problema de consciência individual, e que esta só pode manifestar-se sem ameaças legais; acredito que a lei em vigor mantém uma situação de hipocrisia social, porquanto o aborto é uma prática corrente na nossa sociedade, que só ocasionalmente, muito à portuguesa, é casuisticamente aplicada para servir de exemplo; porque conheço muitas raparigas e mulheres que já o fizeram, que sofreram e sofrem com isso, a quem jamais consideraria a hipótese de as castigar com uma sanção penal, ou propor que o Estado as investigasse. Sobre essa sanção, há que dizer que não colhe o argumento falacioso, diria mesmo hipócrita, utilizado pelos partidários do «não» de que a lei não se aplica e que nenhuma mulher está presa por ter abortado. Se esse é um argumento benévolo, mais o será então a revogação da lei. Todos sabemos, contudo, que não é isso que se pretende, antes se quer manter em vigor a ameaça da sanção, como forma de pressão psicológica e social. Ameaça imprópria, como todas as ameaças, de uma sociedade civilizada, diga-se. ###
3. O pior é que, para quem está inclinado a votar «sim», não existe um único «sim», desde logo porque o tratamento que lhe for dado por via legislativa e por decisão governamental poderá ser imensamente diferente. Eu passo a explicar.
Existem, pelo menos, dois tipos de «sim»: o «sim» À despenalização por se considerar o aborto um último recurso, assumido em estado de desespero consciente; e o «sim» como um simples direito fundamental da mulher ao seu corpo, exercido a expensas do Estado. Concordo com o primeiro, discordo do segundo, pelas razões que se seguem.
4. A primeira delas, é a de que o problema científico e filosófico de se saber se a mulher, pelo acto do aborto, está a dispor apenas de si, ou também da vida de outro, é praticamente insolúvel. Existem posições científicas, filosóficas e morais para sustentar uma e outra posição. Por conseguinte, nenhuma delas, por inconclusivas, ambíguas e reciprocamente refutáveis, deverá servir de fundamento a uma decisão legislativa sobre esta matéria.
5. A segunda, vai no sentido de considerar que o aborto só deve ser moral e legalmente suportável se se tratar de uma decisão livre e consciente da única pessoa que poderá, em última instância, efectivamente decidir: a grávida. Mas, para o poder ser, o Estado não poderá criar um sistema de desresponsabilização absoluta que transforme o aborto numa prática tão fácil e acessível como curar uma dor de cabeça ou uma constipação. Razão pela qual sugeri, ao longo das últimas semanas, que seria um erro incluir o aborto no SNS como acto médico gratuito. Este argumento, que o raciocínio básico do «sim» imediatamente qualificou como um «argumento económico», logo, desprezível, é mais de natureza moral e responsabilizadora, do que propriamente economicista (ainda que se o fosse não estaria a cometer qualquer incorrecção). Felizmente, o Dr. Mário Sousa, uma autoridade nesta e noutras matérias, adepto do «sim», deu-me razão.
6. Em terceiro lugar, considero de muito mau agouro que o governo nada tenha dito sobre a proposta da Drª Maria de Belém Roseira, sobre a criação de mecanismos de reflexão e de responsabilização para quem quiser abortar a expensas do Estado. É grave que um governo e um ministro da saúde tão envolvidos na campanha tenham ignorado essa proposta, que retiraria até ao «não» o seu principal argumento: o de pretenderem diminuir a efectiva prática do aborto, como evidentemente se concluirá de um sistema que aconselha, sugere alternativas e apoia quem está em dúvida. Por que motivo o governo não respondeu a uma interpelação de uma distinta militante e dirigente do partido que o apoia? Infelizmente, temo o pior: por pretender mesmo consagrar legalmente uma interrupção da gravidez irresponsável e sem qualquer acompanhamento médico, que não seja o do acto em si.
7. É, pois, necessário perceber que não existe apenas um «sim» e que as consequências da despenalização não são todas iguais: umas são aceitáveis, outras não o são É pena, diga-se de passagem, que os adeptos do «sim», num aggiornamento militante e pouco racional, não tenham querido explicar as consequências das suas eventuais diferenças, em vez de se terem agrupado em molhe numa argumentação de simples contraditório e de argumentos reflexivos pavlovianos («Oiço falar em penalização e em mulheres na cadeia, voto logo «sim»»). Perderam com isso e poderão bem vir a perder por isso.
8. Um liberal só dá o seu voto ao poder soberano em troca de explicações claras sobre o que este fará com ele. No caso do referendo do aborto, é uma falácia dos adeptos do «sim» dizer-se que vamos votar apenas a despenalização do acto até às 10 semanas. Não, não é verdade. Vamos votar, de facto, a despenalização, mas vamos autorizar um governo a regulamentar a prática do aborto. Sobre essa regulamentação, até agora o governo não disse nada. Em contrapartida, há dirigentes do PS a dizerem coisas completamente opostas, como a Drª Maria de Belém Roseira, com a qual concordo, e a Drª Edite Estrela, que já propôs que a futura legislação despenalizasse, de facto, o aborto para além das 10 semanas. Em que é que ficamos? O que fará este governo, e não os vindouros de direita ou de esquerda, mas este governo que decidirá a partir do dia 12 de Fevereiro, com o meu voto? Sem esse esclarecimento, não se poderá votar em algo que se desconhece. Porque, como dizem os liberais, só se troca alguma coisa por outra melhor. Quando, pura e simplesmente, se desconhece uma das duas alternativas possíveis, não se pode, por definição, escolher.
9. Em conclusão, direi que o meu voto (e julgo que o de muitos milhares de portugueses) continua disponível, e que se decidirá nos seguintes termos:
- Votarei «sim», se ouvir do governo português, que será quem vai ter a responsabilidade de regulamentar a decisão do referendo, uma atitude séria e consciente, que não transforme o aborto num acto irresponsável. Por outras palavras, votarei sim, caso o governo anuncie que acolherá a proposta da Drª Maria de Belém Roseira, ou outra que se lhe equivalha;
- Votarei não, se o governo português não esclarecer claramente que destino pretende dar ao meu voto.
10. Até ao dia 11 de Fevereiro continuarei, pacientemente, a aguardar que me esclareçam.