22.1.07
Como é que vais votar no referendo?
Na minha opinião, a vida humana não pode ser submetida a escrutínio racional. Deve ser encarada como uma questão dogmática: não se discute. Porque, a partir do momento em que a vida humana é admitida à discussão racional, vão sempre aparecer aqueles que encontram razões perfeitamente racionais para a coarctar - e, a partir daqui, o inferno é o limite.´###
Por isso, eu não sou um adversário nem do Sim nem do Não. Sou um adversário do referendo. Porque, como se verificou, o referendo iria trazer para a discussão pública e para o domínio do argumento racional abstracto, aquele que, é provavelmente, um dos poucos temas da vida que não é passível de discussão abstracta - a intimidade de um ser humano. E eu não me refiro aqui ao feto, refiro-me à mãe prospectiva, porque é da intimidade dela que se trata, e a intimidade de cada ser humano, sendo única, não é passível da simplificação e da generalização que são as marcas distintivas do argumento abstracto.
É claro que, vendo-me confrontado com a realidade do referendo e lamentando a sua convocação, posso sempre minimizar o mal, abstendo-se - e é isso que eu vou fazer. Mas isso não acaba com as dificuldades. Como eu, existem milhões de cidadãos no país que são pais ou educadores de adolescentes e que, mais cedo ou mais tarde, se verão confrontados com a pergunta inevitável: como é que vais votar no referendo?
Esta é uma questão difícil e que não tem merecido atenção no debate. Trata-se de uma questão à qual cada pai e cada mãe vão ter de responder - não em termos abstractos - mas nos termos concretos que exigem o bem que ambos desejam aos seus filhos. E é sobre este tema que eu gostaria de transmitir a minha experiência, tanto mais quanto é certo que este é um assunto que nos próximos dias irá entrar pela casa dentro de todas as famílias portuguesas - se é que não entrou já.
Eu sou pai de quatro filhos, dois do sexo masculino (29 e 25 anos) e dois do sexo feminino (23 e 16) e o problema foi-me colocado pela primeira vez no referendo de 1998 quando a minha filha mais velha era então adolescente. A minha outra filha, que é agora adolescente, colocou-me recentemente a mesma questão. Na realidade, são normalmente as raparigas, como seria de esperar, que colocam frontalmente a questão, raramente os rapazes.
Eu vou procurar reproduzir, de forma aproximada, o diálogo que tive por duas vezes e com um intervalo de oito anos:
Ela: "Como é que vais votar no referendo?"
Eu: "Vou abster-me".
Ela: "Porquê?"
Eu: "Porque eu acho que não tenho o direito de andar a decidir sobre a intimidade de cada mulher portuguesa e o que lhe está no ventre".
Ela: "És contra o aborto?"
Eu: "Nem contra nem a favor. Para efeitos práticos, só uma mulher - como tu - é que pode ser contra ou a favor. Eu nunca farei um aborto".
Ela: "Então, e se, um dia, eu fizesse um aborto?"
Eu: "Espero que não tenhas de o fazer. Mas, se o decidires fazer, acho que não deves tomar em consideração aquilo que a multidão tenha decidido em referendo. A multidão não tem autoridade sobre o teu corpo. Só tu é que tens. Acho que deves ouvir as pessoas - se algumas - que considerares relevantes para a tua decisão. Mas a decisão final deve ser sempre tua - e de mais ninguém."
Ela: "E tu?"
Eu: "Eu? Eu vou sempre apoiar a tua decisão, quer decidas fazer aborto quer decidas não o fazer."
Ela: "Mesmo que o aborto seja ilegal?".
Eu: "Claro, mesmo que o aborto seja ilegal. Porque entre a minha filha e a lei, eu prefiro a minha filha".