Pois é, os tribunais não gostam de pessoas comuns. Os tribunais gostam ou toleram quem os ludibria, quem faz jogo de cintura, quem chorando lhes apela ao coração ou se resguarda em milionárias defesas construídas nos interstícios da lei. Estes grupos, na sua diversidade, quase se constituem como tipos no sentido vicentino do termo, nesse espaço dramático que são as salas de audiências dos palácios da justiça. No topo desse espaço, sentados em posição de destaque e devidamente encasulados nas suas vestes, os juízes vão não só decidindo como criando de si uma imagem de serenidade e ponderação que parece tão antiga quanto o latim que identifica o tribunal como domus iustitiae.###
O mundo excessivo que vive muito para lá da lei ou lhe explora habilmente as margens reforça o papel e o perfil dos juízes. E gera uma espécie de alheamento, por parte dos outros cidadãos, perante o que ali se passa.
Ao cidadão comum que viva em Portugal a justiça aparece como cara, muito lenta e ineficaz. Perante isso, os portugueses reagem como lhes é habitual nessas situações: evitam o confronto. Os portugueses não apresentam queixas quando são vítimas de roubos, burlas, maus serviços, negligência médica... As rotundas não são apenas uma mania dos autarcas. As rotundas são uma forma de sobrevivência nacional: não enfrentamos, nem cruzamos à direita nem à esquerda. Contornamos. E para vivermos em paz e sossego contornamos sempre que possível a justiça.
E é no malfadado dia em que estas pessoas ? que desconhecem a lei mas vivem na forte convicção de que se orientarem a sua vida pelo mais elementar bom senso jamais entrarão num tribunal ? chegam a uma sala de audiências que a justiça revela o seu lado mais duro, mais burocrático e mais ineficaz. E é também nesses dias e nesses casos que melhor se assiste ao choque entre o que as pessoas têm como Bem e Mal e aquilo que os tribunais procuram, ou seja, a legalidade.
O azar do sargento Luís Gomes e da sua mulher é serem pessoas comuns. Isto é, acreditam que existe Bem e que existe Mal. E dificilmente se consegue entender como Bem tirar uma criança àqueles que ela reconhece como pais para a entregar a um desconhecido que, note-se, a rejeitou quando soube que ela ia nascer. Estranho não foi a mãe ter desaparecido com a criança. Estranho seria que este casal, após ter recebido a menina, acreditado que a podia adoptar e criado durante quase cinco anos a tivesse entregue. Durante este tempo eles não brincaram aos pais. Não representaram um papel. Eles são pais dela. E os pais não entregam os filhos mesmo que isso implique fugir, ser preso ou desrespeitar a lei. Convirá sublinhar que o cumprimento da lei e das ordens não é um objectivo que se possa sobrepor a tudo e todos. Desobedecer pode ser uma forma de dignidade, ou será que já esquecemos a lição de Aristides Sousa Mendes? Que o tribunal não entenda isto é francamente assustador.
Alguns dos maiores crimes da humanidade foram cometidos no absoluto e escrupuloso cumprimento da lei. Em alguns desses crimes, por exemplo nas sucessivas perseguições ordenadas por Estaline, havia mesmo uma espécie de obsessão legalista. Não interessava a natureza da sentença, apenas os procedimentos. Por outro lado, é preciso que se perceba que as leis não nos chegam intactas e imutáveis dos arcazes do passado, alheias ao tempo e aos povos. As leis evoluem e variam consoante as culturas e as circunstâncias. E em matéria de defesa de menores Portugal não confia actualmente nos seus tribunais nem em muitas das entidades que, funcionando em articulação com a justiça, deveriam proteger as crianças. Casos vários de desfechos dramáticos e em que a intervenção da justiça se pautou por, em nome da legalidade, privilegiar os laços biológicos levaram-nos a isto.
Note-se que não estou a dizer que o tribunal de Torres Novas devia ter ignorado a existência do pai biológico. Mas muito menos me parece que possa ignorar a existência deste pai e desta mãe. E ainda menos me parece que se possa chamar justiça a algo que deixa correr processos em diversos tribunais, processos esses que podem ter sentenças contraditórias, e que não prevê para casos como este a possibilidade de concertação. Esta gente precisa de ajuda, de pessoas que saibam de Direito, de Psicologia, de crescimento infantil e que, em conjunto com eles, encontrem a melhor solução para aquela criança. O que estas pessoas não precisam certamente é de penas de prisão, pedidos de indemnização e formas de actuar que poderão ser eficazes (quem dera que fossem!) quando estão em causa bens materiais mas não crianças. E, mais do que dispensáveis, parecem-me questionáveis algumas das afirmações proferidas pela juíza que presidiu ao julgamento de Torres Novas.
A que título é que foi invocada neste julgamento a existência ou a não existência duma justiça para ricos e para pobres? Pretenderá a juíza que um sargento é rico? Ou que, não sendo rico, é mais abonado do que um carpinteiro? Mesmo que o fosse vai certamente deixar de o ser pois, para defender a filha, o sargento Luís Gomes correu o risco não só de ser preso mas também de pagar elevadas indemnizações ao pai biológico. Por ironia, este homem, que nem sequer arriscou olhar para a criança sem que um teste de ADN que fez forçadamente lhe comprovasse a paternidade, vê agora reconhecido não só o seu direito à tutela da criança como ainda vai receber uma indemnização dos mesmos que trataram, cuidaram e amaram aquela filha que ele não quis.
Aliás, qual teria sido o destino da criança caso Luís Gomes e a mulher não a tivessem acolhido? Na melhor das hipóteses estaria numa instituição. A fazer o quê?
Não sei como acabará este caso. Mas temo sinceramente que o sargento Luís Gomes acabe a comprovar no seu destino uma espécie de regra da justiça em Portugal: a justiça portuguesa é de facto uma justiça de costumes brandos e penas leves ? o que não é necessariamente mau no que às penas respeita. Mas é cega, caprichosa e impiedosamente injusta para aqueles que a confrontam com os seus universos absurdos, atávicos procedimentos e preconceitos eternamente reactualizados.
Ps ? Esta crónica esteve para ser redigida antes da publicação da sentença. Algumas pessoas alertaram-me para o facto que tal podia irritar o tribunal e desse modo agravar ainda mais a situação do sargento Luís Gomes.
Não faço ideia se estes avisos têm ou não algum fundamento. Espero bem que não. E quero acreditar que não. Mas não deixa de ser significativo que eles sejam feitos. Hoje, em Portugal, criticam-se livremente governantes, líderes partidários, autarcas... Ou seja pessoas que se apresentam a eleições. Que mal ou bem dão contas aos cidadãos da sua actividade. Igualmente vemos serem questionadas decisões técnicas como as dos médicos. Mas quando chega à justiça existe uma espécie de tabu. Como se questionar uma sentença pusesse em causa a independência dos tribunais. Como se o interesse jornalístico por um caso o conspurcasse. Em Portugal a justiça tem de aprender a conviver com a liberdade de imprensa e com a democracia.
*PÚBLICO 20 de Janeiro