«Iguais a nascer, iguais a morrer. Novo cemitério da Póvoa de Varzim muda paradigma no culto dos mortos. Câmara impõe minimalismo estético, com jazigos estilizados para acabar com 'decorações excessivas', assume o vereador. O novo cemitério municipal vai provocar uma alteração radical à forma como os habitantes da Póvoa de Varzim manifestam o seu culto pelos mortos, uma vez que os jazigos vão deixar de ser decorados de acordo com o gosto dos familiares do falecido. Por imposição da câmara, todos serão cobertos de forma idêntica 'estilizada' - uma lápide com a menção ao morto e um jarro para flores - variando apenas a possibilidade, para os enterramentos católicos, de ser colocada uma cruz à cabeceira (...). O vereador com o pelouro das Obras Municipais, Aires Pereira, explicou ao PÚBLICO que o conceito que a autarquia quis que estivesse presente no novo equipamento foi baseado numa frase: 'Iguais a nascer, iguais a morrer'.»
Esta notícia constava da edição da passada quinta-feira do Caderno Local do PÚBLICO. Confesso que a li mais do que uma vez e ainda não consegui deixar de me interrogar sobre o que levará um vereador a considerar que tem o direito de decidir quantas jarras, qual o formato das ditas jarras, quantidade de inscrições nas campas... podem ou não os seus munícipes fazer? O que conhecerá do mundo, da História e da Arte este executivo camarário? Num dos livros de epigrafia que folheio enquanto escrevo esta crónica são reproduzidos alguns epitáfios. No «minimalismo estético» adoptado na Póvoa do Varzim não há lugar para a decoração excessiva de muitos deles. Por exemplo para aquele em que, sob a forma de livro profusamente decorado com flores, está esmaltada uma fotografia de criança. Ao lado da imagem lê-se «Anjo adorado Deus te guarde no seu seio como nós te guardamos no nosso coração. Infinitas lágrimas de seus pais e irmã». O que levou os pais desta criança a optarem, em 1977, por este excesso decorativo é provavelmente uma forma de viver a morte semelhante à que levou, algures no sul de Portugal, no tempo do Império Romano, Marcos Comínio Clemente e Vívia Avita a fazerem o seguinte epitáfio em memória da sua filha: «Aqui jaz Comínia Avita, filha de Marcos, de nove anos. Rogo-te traseunte: Diz 'que a terra te seja leve'»###
Ignora também o executivo da Póvoa do Varzim que os mortos têm vontade. Por exemplo, não é claro que tipo de imaginária será autorizada aos fiéis não cristãos. Por outro lado, o que fariam agora na Póvoa se lhes aparecesse uma família ou grupo de amigos querendo colocar uma lápide onde se lesse, como se lê no túmulo do republicano Borges Grainha, falecido em 1925, «benemérito, professor, apóstolo infatigável da liberdade de consciência e o mais audaz e denodado inimigo da Companhia de Jesus em Portugal»?
O túmulo de Borges Grainha está no cemitério do Alto de S. João, em Lisboa, e felizmente aos mortos que repousam neste cemitério foi-lhes permitido expressar as suas paixões, fés e profundas diferenças nas suas campas. Estrelas de cinco pontas, bustos da República, campas onde se cruzam a pedra bruta e a pedra polida, compassos e até a escolha das acácias, em vez dos habituais ciprestes, para algumas das alamedas são símbolos da pertença maçónica de muitos dos mortos que aí foram enterrados e sinais duma diferença que afirmaram em vida e sublinharam na morte. As cruzes ou a falta delas, as jarras cheias de flores de plástico, as fotografias esmaltadas, os jazigos monumentais ou as campas rasas, as orações, os silêncios ou os poemas com que se acompanham os mortos são expressões duma diferença e duma individualidade onde é ou devia ser interdito ao poder interferir. Não por acaso os libertos romanos construíam importantes monumentos fúnebres onde se alongavam nos epitáfios. Afinal esses jazigos, a inscrição neles do nome da família, dos nomes dos seus sucessores e antepassados, representavam para esses antigos escravos uma forma de afirmação da sua liberdade e cidadania. Eram gente.
No meio disto há uma questão aparentemente menor mas que não deixa de me inquietar: quem terá dito ao senhor Aires de Oliveira que o gosto dele é melhor do que o daquelas pessoas que, na sua opinião, optam por «decorações excessivas»? É certo que o vereador Aires de Oliveira não está sozinho nesta espécie de totalitarismo estético aplicado à morte. De há algum tempo a esta parte instituiu-se que os cemitérios ingleses e norte-americanos são o expoente do bom gosto. Essa preferência pela visão arrelvadamente anglo-saxónica e protestante da morte levou a erros de concepção vários em Portugal. Por exemplo, em Lisboa, no cemitério do Lumiar, os solos obstinaram-se em não se comportar perante o relvoso elemento como os solos da Escócia e os problemas não se fizeram tardar.
Para o fim deixei a questão da igualdade. Não só executivo algum pode ter o direito de nos impor a igualdade como a igualdade é em si mesma algo de profundamente desumano. Dos pretéritos incas aos contemporâneos norte-coreanos o sonho da igualdade apenas gerou poderes totalitários em que o grupo que controla o acesso aos bens exerce um poder sem limites sobre os restantes cidadãos. Por ironia, não só estas sociedades são profundamente autoritárias como extraordinariamente desiguais. E são tão mais desiguais quanto rígidas. O problema não é existirem ricos e pobres. Aliás, jamais se conseguiu que os pobres ficassem menos pobres confiscando os bens dos ricos. Regra geral esse processo apenas gerou mais autoritarismo, mais pobreza e, claro, o nascimento ou reforço das fortunas daqueles que oficialmente presidem e vigiam a igualdade dos outros.
Contudo, apesar deste lastro de dor o objectivo da igualdade continua a ser apresentado como algo de desejável, como bem se vê no lema adoptado na Póvoa ? «Iguais a nascer, iguais a morrer» - e nas perguntas do Eurobarómetro. O último Eurobarómetro não só concluía que muitos mais europeus apoiam neste momento a Constituição europeia - de Eurobarómetro em Eurobarómetro havemos de acabar a aprová-la por esmagadora maioria! - como perguntava aos cidadãos se estão dispostos a abdicar de liberdades individuais em troca de mais igualdade e justiça. Significativo não é apenas que os portugueses sejam o povo da Europa em que mais pessoas estão dispostas a abdicar da sua liberdade individual em detrimento de mais justiça e igualdade. Significativo é que isso tenha sido perguntado, na Europa no ano da graça de 2006. Donde virá esta peregrina ideia de que menos liberdade individual corresponde a mais e melhor justiça? A liberdade é precisamente a condição sine qua non da justiça. Alguém conhece uma ditadura onde a justiça funcione? Quanto à igualdade, a que título é que ela é apresentada como desejável num Eurobarómetro? Sociedades que apostam na diversidade e não temem a mobilidade social são sociedades que geram riqueza e não pensam que ela se obtém através do igualitarismo. As outras, as que apostam no igualitarismo, tornam-se rígidas, preconceituosas, asfixiantes. Quer para os vivos quer para os mortos.
*PÚBLICO, 30 de Dezembro de 2006