As chamadas "comissões de aconselhamento" não estavam na pergunta referendada - nem tinham de constar. A pergunta era a que lá estava, versava sobre a despenalização da IVG até às 10 semanas. Nunca, nessa pergunta, existiu nada que se assemelhasse às dezenas de miríficas interrogações que alguns exegetas do "Não" nela pretendiam encontrar.
Durante a campanha, alguns dos partidários do "Sim" defenderam a existência dessas "comissões" na lei a elaborar após a vitória do "Sim" (os nãozistas nem queriam ouvir falar no assunto, recordemo-nos), seguindo de perto o modelo alemão. Eu próprio sou a favor dessa solução.
No entanto, reconheço a existência de fortes argumentos contra:
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1. A nossa forma de ser e estar é muito diferente da germânica. Enquanto jurista estou farto de ver exemplos de excelentes leis de inspiração alemã que se revelam um desastre quando são aplicadas em Portugal. O problema, quase sempre, radica na burocracia, no "complicador" permanentemente ligado na nossa Administração Pública, sempre à espera de poder confundir, baralhar e entravar a vontade do administrado. Ou seja, se o aconselhamento for obrigatório será muito difícil conciliá-lo com o prazo de 10 semanas: como me retorquiu alguém a este propósito, entre marcar a reunião, os papeis, pareceres, atestados e tudo o resto, lá se iam as 10 semanas e o direito conquistado em referendo;
2. O grande problema, na minha opinião, prende-se com a péssima experiência das actuais "Comissões de Ética para a Saúde", reguladas no Decreto-Lei nº 97/95, de 10 de Maio. Ao abrigo de uma legislação assaz indeterminada e, ainda assim, exorbitando largamente os seus poderes, essas "comissões" interpretavam as excepções do art. 142.º do Código Penal a seu bel prazer, designadamente negando a possibilidade das mulheres realizarem legalmente a IVG ainda que o caso em análise se subsumisse claramente a uma das excepções legalmente consagradas. Repito, sem possuirem poderes para tal. Mas fizeram-no. Quase sempre perante a placidez temerosa dos médicos que atestavam a necessidade da efectivação dessa IVG e a cumplicidade bovina das administrações hospitalares. Aliás, sempre tive a opinião de que a despenalização da IVG em Portugal só chegou a ser o problema político que foi - 2 referendos - precisamente porque nunca se fez a interpretação da legislação como se faz em Espanha. E a maior parte da responsabilidade do adensamento do problema vai inteirinho para estas "Comissões".
Porquê? Só quem ande muito distraído poderá ignorar a razão fundamental - mas sei que muitos dos nossos leitores/comentadores escolheram como padrão existencial o-fingir-não-saber-custe-o-que-custar...
Já, publicamente, assumi a defesa de que os titulares de cargos públicos não eleitos, directa ou indirectamente, mas com poder efectivo de decisão (quer no poder administrativo quer na magistratura, por exemplo) deveriam fazer uma declaração obrigatória acerca da sua participação em organizações susceptíveis de conformarem valorativamente o conteúdo das suas decisões - claramente: se estes titulares de cargos públicos forem membros da maçonaria e da opus dei, por exemplo.
Outros países já enveredaram por esse caminho. Continuo a achar urgente que se tomem medidas nesse sentido. Até lá, compreendo os múltiplos receios de que essas novas e almejadas "comissões de aconselhamento" possam provocar àqueles que tenham bem presente a desgraça que as actuais provocaram por esse país fora.