Quem exerce uma actividade intelectual e vai de um país católico viver para um país de tradição protestante, uma das experiências mais extraordinárias é a primeira vez que entra numa Biblioteca. Umberto Eco ficou de tal modo impressionado quando tomou contacto com as bibliotecas americanas que escreveu um livro sobre elas.###
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Quando os povos protestantes se separaram de Roma, foi como se a autoridade centralizada do Papa tivesse sido disseminada por todos os homens, cabendo uma pequena fracção a cada um deles. Sem a intermediação da Igreja, competia agora a cada homem descobrir a palavra de Deus, e isso ele só conseguiria realizar lendo e estudando - em primeiro lugar, as Escrituras.
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Pelo contrário, nos países católicos, a palavra de Deus continuava a chegar a todos os homens sem que eles tivessem de fazer qualquer esforço de estudo e de leitura. Bastava ir à missa, onde um grupo de especialistas - os padres - lhes transmitiriam tudo aquilo que Deus tinha para lhes dizer.
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A tradição protestante transmitiu-se à democracia. O governo por opinião, que é próprio da democracia, exigia que os cidadãos dispusessem de informação e de meios de leitura e estudo que lhes permitissem formar opiniões fundamentadas sobre a vida, porque dessas opiniões dependia o próprio destino da sua vida colectiva.
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Foi assim que a primeira preocupação dos pais fundadores americanos foi a de pôr à disposição de todos os cidadãos uma enorme e vastíssima biblioteca. A Biblioteca do Congresso é a mais antiga instituição cultural americana, a maior de todas as bibliotecas que a humanidade jamais conheceu e hoje a biblioteca de referência em todo o mundo.
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Mas, então, o que distingue uma biblioteca de um país protestante de uma biblioteca de um país católico?. Não é apenas a biblioteca num país protestante estar sempre actualizada, possuindo os livros mais recentes e até os jornais e as revistas do dia. Não é sequer o facto de a biblioteca nesses países ser sempre um lugar aprazível para se estar. A maior diferença é a liberdade que cada cidadão possui para entrar lá dentro, chegar junto dos livros e ficar um dia inteiro, se o desejar, a passear-se por entre prateleiras inteiras e cheias de livros.
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É esta experiência única de liberdade de passear por entre os livros, que permite a cada homem descobrir livros que ele nunca imaginou que existissem, que lhe permite ter experiências intelectuais e espirituais que ele nunca pensou que fossem possíveis. Para um homem indo de um país católico e exercendo uma actividade intelectual, ele vai ficar seduzido pela biblioteca de um país protestante. Ele vai passar dias e dias lá dentro; ao fim de cada dia, ele vai trazer para casa livros de autores acerca dos quais nunca tinha ouvido falar. Quando, ao fim de uns anos, ele tiver de regressar ao seu país de origem, ele não será mais o mesmo homem.
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Num país católico, pelo contrário, a biblioteca é frequentemente um local inóspito; tratando-se de uma biblioteca universitária, frequentemente o mais inóspito de todos os locais do edifício. Mais importante, o leitor potencial nunca tem acesso ao convívio directo com as prateleiras e os livros. Entre o leitor e os livros existe uma barreira intransponível constituída por um balcão e os funcionários, que irão lá dentro, diligentemente, buscar os livros que o leitor requisitou.
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Na biblioteca de um país católico um homem só tem acesso aos livros e aos autores que já conhecia antes ou de que tinha ouvido falar. Porém, a maior experiência que uma biblioteca tem para oferecer a um homem é a liberdade de ele ter acesso aos livros que não conhecia e aos autores de que nunca tinha ouvido falar. E essa liberdade só existe nos países de tradição protestante.
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E porque não essa liberdade nas bibliotecas dos países católicos? Porque, sem pôr uma autoridade - um funcionário da biblioteca - atrás de cada leitor, o mais provável é que, ao fim de alguns anos, metade dos livros da biblioteca estivessem danificados e a outra metade tivesse ido ... p'ró maneta.