27.4.07

Elogio da Blasfémia

Blasfémiatoda a palavra ou atitude injuriosa contra Deus, a Santíssima Virgem ou os Santos; atribuição de defeitos a Deus ou negação de qualquer dos Seus atributos; dito insultuoso a pessoa muito respeitável; impropério; praga (do dicionário);

Heresia - doutrina seguida por um cristão baptizado que nega ou põe em dúvida com pertinácia alguma das verdades da fé católica; acto ou palavra ofensiva da religião; disparate; absurdo; contra-senso (também do dicionário).


Neste contexto, a Blasfémia foi em muitos países sancionada, vigorando ainda no ocidente algumas “relíquias legais” já nunca aplicadas, mas que constituem resquícios da osmose noutras eras entre o poder político e o poder religioso. Vítima principal desta atitude persecutória por parte dos poderes foi, como não podia deixar de ser, a liberdade de expressão, frequentemente coarctada aos mais curiosos e inconformistas.###
Se quisermos alargar o âmbito para além da vertente religiosa e actualizar os conceitos para os dias de hoje, poderemos definir sinteticamente a Blasfémia ou a Heresia como a simples irreverência ou como a contestação do status quo, o questionar das “verdades” estabelecidas e universalmente aceites, do conceito e do preconceito, a profanação deliberada do “sagrado”, extravasando também este para além da religião.

Ouvir questionar certezas é sempre incómodo para quem vive no confortinho das ditas ou potencialmente ameaçador para quem beneficia com a sua vigência. Não admira pois que, ao longo da História, os Blasfemos nunca tivessem vida fácil, ou a tivessem mesmo perdido via fogueira inquisitorial. Na sua qualidade de intelectuais, investigadores, homens de ciência, viviam na dúvida permanente e numa contínua aprendizagem pelo erro e pelo confronto de ideias. As suas teses heterodoxas feriam geralmente interesses instalados e provocavam (e provocam) a eterna incompreensão e até um genuíno choque nos seus contemporâneos, sempre acomodados ao mainstream. É porém indiscutível que muitos deles abriram novos caminhos e horizontes à Humanidade, embora pouquíssimos os conseguiram percorrer em vida. Galileu e Mandeville são exemplos de dois ilustríssimos Blasfemos de outrora, aquele desde há muito consensual, este ainda hoje polémico com a sua tese do “egoísmo virtuoso” explanada na genial “Fábula das Abelhas”.

Os temas “intocáveis” em que os Blasfemos adoram remexer vão variando ao longo do tempo, mas têm entre si em comum a sua directa ou indirecta conexão, em cada momento, com os poderes instituídos: antes o poder temporal da Igreja ou o absolutismo, hoje o Estado Social, o puritanismo comportamental ou a intangibilidade dos judeus, ontem e sempre a religião.

O Blasfémias nunca teve pretensões de mudar o mundo, mas apenas e tão só ser o máximo a que pode aspirar um blogue: um espaço de debate de cariz liberal, sem tabus ou convenções – não é por acaso que nunca tivemos, nem pretendemos ter linha editorial – por utilização, embora de forma rudimentar e amadora, daquilo que, com alguma presunção eu designaria por “técnica blasfema”: a interrogação constante, o levantar questões, apontar contradições e por vezes soluções, a denúncia das feridas e fragilidades do “sagrado” e do “intocável”, num discurso que sempre se assumiu de contra-poder. Modéstia à parte - e estou tanto mais à vontade para afirmar isto quanto a minha participação tem sido escassa por impossibilidades profissionais – é indiscutível que o Blasfémias é hoje uma Instituição que conseguiu fazer a diferença e ganhar alguma influência no ainda restrito panorama da blogosfera lusa.

Com tais singelas pretensões, é natural que desde sempre ambicionássemos integrar no blogue aquele que é, desde há mais de 20 anos, o Blasfemo por excelência em Portugal, um exímio profissional da arte: Pedro Arroja. Foi fácil o entendimento e naturalíssima a sua integração no Blasfémias que – elogio seu – revelava idêntica acutilância e inconformismo que ele experimentara quase 20 anos antes (na altura isolado e com grande dose de coragem, reconheça-se).

O Pedro mostrou-se igual a si próprio e em grande forma. Ninguém como ele consegue de facto provocar e irritar o establishment, levantar polémicas onde ninguém sonharia que existissem, sobretudo aprofundar e fundamentar os temas com o rigor exigível a um académico, embora tal não o imunize ao erro. A sua postura terá mudado (?) face à que lhe conhecêramos antes, se bem que me pareça que houve apenas alteração no “intocável”. O que não há dúvidas é que refinou a sua veia polemista, empolando a habitual fúria do gentio mas perturbando também alguns que antes pretenderiam emulá-lo. As reacções às suas teses são o habitual, quando se suscitam temas incómodos ou “intocáveis”, o que nele é uma constante: algum confronto intelectual com antíteses enriquecedoras, urros generalizados da multidão com ataques ad hominem e insulto soez.

Pedro Arroja abandonou o Blasfémias. Não foi expulso por ninguém – de resto, esta casa era tanto sua como de qualquer outro membro – mas saiu por iniciativa exclusivamente sua, apercebendo-se do incómodo manifestado por alguns colegas do blogue. Também não é verdade que tenha existido da parte destes algum tipo de complot para saneá-lo. A minha convicção é que, na arte da Blasfémia, somos todos meros aprendizes à beira do Pedro, toscos de técnica e falhos de elegância com a agravante de, muitas vezes, analisarmos questões estruturantes com a visão do quotidiano com esta a ser naturalmente influenciada pela perspectiva do mainstreamblasfemem lá, mas com respeitinho, senão a gente renega-vos.

Pessoalmente tenho pena. Embora nada disto justifique o drama ou a alegria que se manifestam aí por baixo nos comentários – trata-se apenas de um blogue – o Blasfémias ficou efectivamente mais pobre. Mas, passe a presunção e a repetição, o Blasfémias é uma Instituição e estas valem muito mais do que cada um dos seus membros. A sua sobrevivência e perenidade depende naturalmente das vicissitudes humanas, mas esta não é a nossa primeira crise nem será por certo a última. Até agora, temos sabido dar a volta e, diz-nos a experiência, na blogosfera nada é irreversível.

Obrigado por tudo Pedro e até breve!