25.5.07

O povo morreu. Viva o contribuinte!*

Tenho diante de mim uma fotocópia feita na Biblioteca Nacional. Como se trata duma reprodução a cores demorou duas semanas a ser entregue e para a solicitar foi necessário preencher um formulário de duas páginas. Quando a fotocópia finalmente chega vem acompanhada duma factura assinada por dois funcionários e devidamente estampilhada com o selo branco. Valor da factura: 1 euro e 53 cêntimos. Ou seja uma quantia que não deve sequer pagar o envelope onde se guarda a dita fotocópia, nem os duplicados da requisição ou até o tempo que demorou a redigir a factura. ###
É como se a máquina estatal funcionasse por si e para si. Assim se explica que tenhamos escolas públicas onde se ensina muito bem mas que não têm vigilância nos recreios, hospitais de referência sem cadeiras na sala de espera ou vice versa. Se assim não fosse, por exemplo, os resultados das provas de aferição recentemente realizadas seriam tornados públicos.
Muitos dos serviços públicos vivem na ficção da gratituidade e da igualdade. Logo faz-se de conta que todos os serviços são igualmente bons e por isso não se divulgam os resultados das avaliações. E faz-se também de conta que são gratuitos e por isso não se deve dizer quanto custam. Os pais não só deviam ser informados sobre os resultados das provas de aferição como também deviam saber qual o custo da frequência escolar oficialmente ‘gratuita’ dos seus filhos ou sobre o valor do parto ‘gratuito’...
Mas a questão dos serviços públicos e dos impostos que os sustentam não se esgota no seu modo opaco de funcionamento. As populações que Rui Tavares retrata em protesto pelo 'encerramento de maternidades, de urgências, de esquadras' confrontam-se com muito mais do que um simples fecho de serviços. O estado social que para estas pessoas começou por ser uma garantia de segurança nos momentos difíceis da vida pode estar a revelar-se uma armadilha. Estas pessoas que agora protestam fazem parte daquilo que podemos definir como a primeira geração dos contribuintes. Os seus avós e pais guardaram minúsculas poupanças em pés de meia e acreditavam que os serviços públicos eram benesses que os governantes davam. Eles começaram por perceber que ninguém lhes dava nada. Antes pelo contrário eles é que davam cada vez mais impostos. Mas pagaram-nos na convicção que quando chegasse a sua vez de precisar do Estado este não lhes faltaria com a reforma, o hospital ou a esquadra. E é esta certeza que vêem agora fugir. E é também esta certeza que ninguém lhes pode dar. A única certeza é que têm de continuar a pagar taxas, contribuições e impostos.
O Estado que em Portugal se sonha social desde Marcelo Caetano esgota-se e preenche-se numa gigantesca actividade licenciadora que na sua voracidade de verbas não hesita em recuperar comportamentos autoritários. Veja-se por exemplo a divulgação da lista dos devedores fiscais ou a alteração das regras para quem contesta as decisões do fisco, tornando os tribunais fiscais cada vez mais inacessíveis e inquestionáveis.
Os cidadãos, que em Portugal são os filhos e os netos do bom povo, tornaram-se nos pais e nos avós dos contribuintes. Ao povo os governos diziam que davam reformas e pensões. Aos cidadãos os governos prometeram justiça e direitos. Aos contribuintes exige-se que paguem.

*PÚBLICO, 24 de Maio