Astérix foi considerado “demasiado francês” para protagonizar uma campanha em prol dos direitos das crianças. Pessoalmente acredito que para tal opinião muito deve ter contribuído também o gosto pelas zaragatas e banquetes que caracterizam a endiabrada aldeia gaulesa, gosto esse nada compatível com o totalitarismo higiénico que caracteriza presentemente a UE. Mas por agora fiquemo-nos pela acusação de perfil “demasiado francês”. ###
A UE constrói-se num território de povos, nações e estados com muita História. Se se quiser demasiada História. Não admira que o europeísmo se tenha afirmado inicialmente como uma espécie de antídoto contra esse passado excessivo, fronteiras rendilhadas e séculos de batalhas. Mas o que começou por ser um projecto entre estados que pretendiam não ficar reféns da História foi-se configurando ele mesmo como um estado nascido dum torvelinho de regulamentos, directivas, tratados e anexos.
Simultaneamente foi-se instilando a ideia de que a Europa é o nosso futuro comum obrigatório. Quem discorda de tal vaticínio é apresentado como medroso, reaccionário, radical... consoante as circunstâncias. E sendo a Europa o tal futuro incontornável, que apenas os imbuídos de má fé não percebem, há que reescrever o passado. Esse tempo demasiado que, como Astérix, há que atirar para baixo do tapete. Uma das medidas mais emblemáticas desta linha de actuação foi a proposta feita, em Março deste ano, pela ministra da Educação alemã para que os 27 tivessem um Livro Europeu de História. A proposta não passou disso mesmo mas não tardará que, por aqui e ali, vão surgindo umas brochuras devidamente custeadas por Bruxelas dando conta dessa versão anotada e corrigida do passado. Nas escolas as criancinhas debitarão que desde sempre sonhámos em constituir uma união europeia. Ou uma federação.
A UE corre o risco de ser cada vez mais um projecto dos líderes e uma abstracção para os povos. A UE é certamente um espaço de democracia mas é simultaneamente o espaço político cujos líderes evitam por todos os meios que seja sufragado pelo voto popular. Para ilustrar este paradoxo veja-se o caso português: aderimos à então CEE para travar derivas autoritárias mas até agora nunca os nossos líderes nos consideraram aptos para votarmos as grandes decisões da UE, como o tratado europeu, o euro ou Maastricht. Durante quanto tempo resistirá a UE a esta afirmação pela lógica do facto consumado?
A UE pode preocupar-se com a vida dos povos mas não só se dá mal com o povo como começou a ter medo dele. E isto, que é válido para o funcionamento da UE, é também válido nas relações com boa parte dos nossos vizinhos: nas recentes legislativas que tiveram lugar na Argélia a abstenção foi a mais alta de sempre – 63,5 por cento dos eleitores argelinos optaram por não votar. Mesmo dando como adquirido que esses mais de 60 por cento não serão todos simpatizantes dos fundamentalistas que estavam impedidos de participar teremos de convir que o dilema para UE existe. Tal como existe nas relações com a Tunísia, Marrocos, Líbia... Como escreveu Rui Tavares, a UE é compromisso mas não podemos esquecer que os compromissos são como as moedas: têm duas faces.
*PÚBLICO, 3 de Julho
A UE constrói-se num território de povos, nações e estados com muita História. Se se quiser demasiada História. Não admira que o europeísmo se tenha afirmado inicialmente como uma espécie de antídoto contra esse passado excessivo, fronteiras rendilhadas e séculos de batalhas. Mas o que começou por ser um projecto entre estados que pretendiam não ficar reféns da História foi-se configurando ele mesmo como um estado nascido dum torvelinho de regulamentos, directivas, tratados e anexos.
Simultaneamente foi-se instilando a ideia de que a Europa é o nosso futuro comum obrigatório. Quem discorda de tal vaticínio é apresentado como medroso, reaccionário, radical... consoante as circunstâncias. E sendo a Europa o tal futuro incontornável, que apenas os imbuídos de má fé não percebem, há que reescrever o passado. Esse tempo demasiado que, como Astérix, há que atirar para baixo do tapete. Uma das medidas mais emblemáticas desta linha de actuação foi a proposta feita, em Março deste ano, pela ministra da Educação alemã para que os 27 tivessem um Livro Europeu de História. A proposta não passou disso mesmo mas não tardará que, por aqui e ali, vão surgindo umas brochuras devidamente custeadas por Bruxelas dando conta dessa versão anotada e corrigida do passado. Nas escolas as criancinhas debitarão que desde sempre sonhámos em constituir uma união europeia. Ou uma federação.
A UE corre o risco de ser cada vez mais um projecto dos líderes e uma abstracção para os povos. A UE é certamente um espaço de democracia mas é simultaneamente o espaço político cujos líderes evitam por todos os meios que seja sufragado pelo voto popular. Para ilustrar este paradoxo veja-se o caso português: aderimos à então CEE para travar derivas autoritárias mas até agora nunca os nossos líderes nos consideraram aptos para votarmos as grandes decisões da UE, como o tratado europeu, o euro ou Maastricht. Durante quanto tempo resistirá a UE a esta afirmação pela lógica do facto consumado?
A UE pode preocupar-se com a vida dos povos mas não só se dá mal com o povo como começou a ter medo dele. E isto, que é válido para o funcionamento da UE, é também válido nas relações com boa parte dos nossos vizinhos: nas recentes legislativas que tiveram lugar na Argélia a abstenção foi a mais alta de sempre – 63,5 por cento dos eleitores argelinos optaram por não votar. Mesmo dando como adquirido que esses mais de 60 por cento não serão todos simpatizantes dos fundamentalistas que estavam impedidos de participar teremos de convir que o dilema para UE existe. Tal como existe nas relações com a Tunísia, Marrocos, Líbia... Como escreveu Rui Tavares, a UE é compromisso mas não podemos esquecer que os compromissos são como as moedas: têm duas faces.
*PÚBLICO, 3 de Julho