A bola-de-Berlim tornou-se a gota de água que me fez perder a paciência. Descrer que algum tino ou vergonha restem entre nós. De agora em diante o meu propósito é simplesmente descobrir como sobreviver num país que persegue nas praias os vendedores de bolos enquanto nas falésias se alinham os mais monstruosos projectos urbanísticos saídos da mente humana. Todos legais, claro. Os monstros urbanísticos. Porque os desgraçados dos vendedores de bolos são, segundo os iluminados da ASAE, o grande problema das nossas praias. ###
Existem poucas coisas na vida melhores do que uma bola de Berlim com creme, polvilhada de açúcar, comida no areal, após um banho de mar. Pois a ASAE, essa espécie de KGB higiénico, entendeu que a bola de Berlim tem de ser vendida com uns bizarros requisitos que me dispenso de descrever pois Vasco Pulido Valente já os detalhou exaustivamente.
Mas o pior é que à loucura da ASAE se juntam ainda os despotismos dos outros poderes. Assim, segundo o 'Diário de Notícias', na Costa da Caparica os vendedores de bolos nas praias não têm licenças. Porquê? Porque a capitania não as passa. E porque não passa licenças a capitania? Porque para se obter a licença para vender os ditos bolos nas praias tem de se apresentar um cartão de vendedor ambulante passado pela autarquia. Ora a autarquia entendeu, em 1983, proibir a venda ambulante no concelho. Logo não passa cartões. Logo não há licenças. Logo os vendedores de bolos não o podem ser.
Nunca adoeci por ter comido bolas de Berlim com creme, vendidas por gente que não tem licença, desconhece os regulamentos da ASAE mas é capaz de palmilhar extensos areais gritando 'Olháá bolinha!' Contudo tenho naúseas perante o espectáculo dum litoral onde há mais lugar para os ‘caddies’ do golf do que para os vendedores de bolas de Berlim.
Os poderes omnipotentes dos ‘copinhos de leite’ da ASAE só são tolerados porque a alimentação se tornou numa obsessão. Os alimentos são cada vez mais vistos como medicamentos e não há dia em que não se atormentem as famílias com enumerações daquilo que as criancinhas deviam comer e não comem. Há alguns meses uma marca de margarinas inventou mesmo uma campanha em que, em vez de promover directamente os seus produtos, pôs uns nutricionistas a dizer que os pequenos almoços dos infantes portugueses eram uma miséria porque, entre outras coisas, não incluíam cremes vegetais, vulgo margarinas. Nos dias seguintes jornais, rádios e televisões encheram-se de títulos como «Os perigos do pequeno-almoço» e concluía-se que em consequência da falta dos ditos cremes vegetais nas fatias do pão matinal, milhares de potenciais lusos ‘einsteinezinhos’ ficariam por revelar. Na mesma linha do ‘alimento-medicamento e tónico para a inteligência’, o PÚBLICO até resolveu organizar umas dietas adequadas para a época de exames.
Não sei o que teria sido a minha vida de estudante se, em vez de me ter empaturrado nos dias dos testes com fatias de salame de chocolate amargo recheado com bolachas muito amanteigadas aromatizadas com rum, eu tivesse comido tofu de cebolada?! E, certamente por um desarranjo gastro-cerebral da minha pessoa, considero-me feliz por ter nascido num tempo em que não se consideravam as batatas fritas um obstáculo para a resolução das equações e em que as mães acreditavam que os morangos com chantilly ajudavam os cérebros a deslizar do Código de Hamurábi para as nunaces dos estilos jónico e dórico. Mas até isso será corrigido a seu tempo, pois não tardará o dia em que uma qualquer ASAE se arrogue o direito de me dizer o que posso ou não comer, em minha casa.
*PÚBLICO, 23 de Julho