Não faço a menor ideia da utilidade que o diário de Kate McCann possa ter para a investigação. Espero que a tenha porque a apreensão pela polícia dum diário não é um acto que nos deixe tranquilos. E espero também que caso esse diário seja relevante para o apuramento dos factos não acabe a ser excluído do painel das provas mercê dos sempre oportunos erros processuais como aconteceu com o diário do embaixador Jorge Ritto, no processo Casa Pia.
Mas independentemente do valor processual do diário de Kate McCann e até das razões mais ou menos ínvias que podem ter levado ao seu aparecimento, o que me interessa é aquela frase que fez título “Kate chama histéricos aos filhos no diário”. Caso escrevessem diários todas as mães poderiam ter escrito isso. ###
Kate McCann pode não ter respondido às perguntas da PJ. Pode ter ludibriado os jornalistas. Pode ter mentido quando pediu a benção de Bento XVI. Pode ter assassinado a filha e ocultado o cadáver. Pode ser vítima da mais terrível das acusações ou ser autora duma mistificação monstruosa. Mas na hora de escrever, escreveu algo que todas mulheres subscreveriam caso ousassem passar para o papel a verdade sobre os filhos: frequentemente as crianças parecem histéricas, por vezes consomem as forças dos pais e, nas férias, as mães tendem a ficar ainda mais cansadas. Contudo as mulheres fazem poucos diários e, mesmo quando os escrevem, os filhos não são geralmente tema para grandes análises. Felizmente. As mães amam-nos demais para isso. Afinal se as autoras dos nossos dias não nos pouparem a tudo o que sobre nós sabem que indulgência poderíamos nós esperar dos outros?
Para o apuramento do acontecido a Madeleine McCann não me parece importante que a sua mãe tenha escrito que os filhos eram histéricos. Para a tranquilidade de muitos milhares de mães parece-me importantíssimo que se diga e escreva que existem momentos em que todas as mães acham os seus filhos histéricos.
A actual infantilização da sociedade levou a uma espécie de hiper responsabilização dos pais. Temos hoje uma geração de jovens adultos que oficialmente vive para ser pai ou mãe. Vestem-se como crianças grandes e é suposto que eles e os filhos brinquem juntos, se divirtam juntos, saibam tudo uns sobre os outros. Uns teóricos desta esgotante forma de vida sugerem que os pais deviam estar permanentemente em casa com os filhos até estes fazerem dois ou três anos. Alguns vão mais longe e propõem que a própria escolarização seja asseguarada pela família. Qualquer ajuntamento de duas ou três crianças e dos seus jovens pais torna-se um escrutínio permanente das competências paternas: é suposto que as criancinhas se portem como dizem os manuais, digam frases de uma profundidade pasmosa e que nunca por nunca ser borrem a pintura. Como é óbvio as crianças pressentem as fragilidades de quem lhes devia dar segurança e exploram-nas à exaustão: tornam-se nuns tiranetes momentaneamente insuportáveis e os pais afligem-se não tanto pelo destempero dos filhos mas sim por aquilo que os outros possam pensar. Sobretudo que os outros possam pensar que eles são maus pais.
Neste universo de ursinhos, muita interacção e jogos didácticos as crianças adormecem a horas certas e não fazem birras nos restaurantes. Os pais não gritam com elas e muito menos lhes dão uma palmada no rabo para que se sentem à mesa. E lá no fundo as mães perguntam-se se serão elas uns monstros por acharem que os seus filhos são histéricos. Ou pior, será que alguém vai um dia descobrir que elas o pensaram?
*PÚBLICO, 17 de Setembro