19.12.06

Croquetes*

Aquela massa adaptável a todas as circunstâncias, aquela capa a dar consistência ao que a não tem, aquela cor indefinida e sobretudo o imperscrutável dos seus ingredientes fizeram do croquete não só o mais actual dos símbolos nacionais como a melhor imagem de Portugal face ao governo de José Sócrates.###
Tal como acontece com alguns croquetes cujo recheio nos inquieta e logo engolimos sem sequer olharmos também com José Sócrates aprendemos a digerir rapidamente as notícias e a poupar nos detalhes. Digam lá que não sabe a nervo, quiçá a osso no meio da massa, o penúltimo parágrafo da notícia que o DN dedicou a 26 de Novembro à última cimeira Luso-Espanhola: «Sócrates, por sua vez, considerou 'exemplares' as relações luso-espanholas, sublinhando que os dois países 'têm os olhos postos no futuro'. A título de exemplo, mencionou o acordo sobre a criação do Instituto Luso-Espanhol de Investigação de Nanotecnologia [sistema de engenheria molecular], que terá sede em Braga. Um imprevisto percalço tecnológico impediu, no entanto, a exibição de um DVD destinado a promover este instituto que a delegação portuguesa levou a Badajoz. Um facto que causou algum embaraço na comitiva de Sócrates, apesar da aparente compreensão espanhola.» Este incidente é tão mais ridículo quanto aos portugueses foi dito que nesta cimeira se apostaria sobretudo nas novas tecnologias e tão mais embaraçoso quanto se sabe que Portugal disputou a Espanha a sede deste Instituto Luso-Espanhol de Investigação de Nanotecnologia.
Não querendo copiar as palavras de Zapatero que faziam o título deste artigo do DN «Dá gosto trabalhar com este Governo e este país» ? sempre posso acrescentar que, portas adentro, gosto pode não dar mas impõe certamente muito respeitinho. Como um dia avisou Jorge Coelho «Quem se mete com o PS leva!» Provavelmente todos os partidos pensam isso. Mas nem todos o podem dizer e muito menos passar à prática. Acontece que o PS (e Alberto João Jardim também mas este felizmente está restringido ao espaço madeirense!) não só é o único partido que o diz em voz alta como também goza dum peculiar estado de impunidade que leva a que se aceite este estilo pesporrento como um facto não só normal como inevitável. Tão inevitável quanto os croquetes num coktail.
Conseguir criar esta sensação de inevitabilidade é talvez o melhor seguro de vida dum político. Os portugueses não pensavam necessariamente bem de Salazar mas acreditavam que ele sabia e escolhia o que era melhor para Portugal. De alguma forma Sócrates tenta repetir este esquema: não quer que o amem mas sim que o considerem indispensável.
Contudo o mais interessante é que o acto de questionar as opções governamentais ? e isso sim é o verdadeiro estado de graça ? aparece aos olhos da opinião pública, e não apenas do eleitorado socialista, como um entrave aos grandes desígnios nacionais. Aliás nunca Governo algum na democracia usou tanto e tão bem quanto este a palavra governo: «o Governo faz», «o Governo decidiu», «o Governo promove»... ouve-se todos os dias, vária vezes, em todos os noticiários. (Mais uma vez a comparação com a Madeira impõe-se. Qualquer declaração oficial ou oficiosa proveniente daquelas bandas, seja o assunto a reprodução das focas-monge ou o alargamento da rede viária acaba invariavelmente nuns «graças ao Governo regional»)
Assim postas as coisas, o Governo apenas tem de conseguir (e tem conseguido) deslocalizar a discussão das questões substantivas como a OTA, o TGV, a reforma da Segurança Social e do Estado, para matérias que têm implícitos juízos de valor como o progresso e a justiça social. Uma vez aí chegados aqueles que discordam das decisões governamentais deixam de ser vistos como opositores e passam a retrógrados defensores de privilégios iníquos. Quase invariavelmente os visados por estes anátemas acabam por esquecer o assunto que os trouxe à discussão e enredam-se em mil justificações sobre o seu ódio aos privilégios e denodado amor ao progresso.
A discussão em torno do designado regime especial dos jornalistas é exemplar deste processo. O dito regime especial - e ser especial neste organigrama do mundo mundo é tido como negativo por implicar que o especial está contra o geral - era tão só um serviço em que os jornalistas pagavam as suas despesas de saúde, despesas essas das quais eram posteriormente reembolsados. A isto - que parece o sonho de qualquer ministro que queira controlar as despesas - há que juntar que o dito regime especial dos jornalistas não tinha custos fixos. Não existem centros, recepcionistas, seguranças, médicos, aparelhos disto e daquilo. Problemas de horários ou de funcionamento. Nada! Tudo isso estava diluído e por conta dos proprietários dos consultórios que os jornalistas livremente escolhiam. E é exactamente a liberdade de escolha que estava implícita neste regime que ditou o fim da Caixa dos Jornalistas.
E o que fazem perante a extinção da sua Caixa os jornalistas ou pelo menos boa parte deles? Garantem que nunca quiseram ser privilegiados. E assim contentíssimos por deixarem de ser privilegiados perdem um serviço de assistência na doença que funcionava bem sem que lhes ocorra que o problema não estava no seu regime dito especial mas sim na autoritarissima e ineficaz organização do dito regime geral. Como é possível que se tenha de escolher o centro de saúde da nossa área de residência? Que não se possa mudar de médico? Que em alguns desses centros se tenha de ir à hora X para marcar para o dia Z?...
O actual governo não abre mão do poder sobre os cidadãos. Encerra serviços, como escolas ou centros de saúde, mas jamais liberta da tutela estatal os cidadãos mesmo aqueles a quem corta serviços. O actual Governo pode apoiar directamente colégios privados mas rejeita a possibilidade de entregar o cheque-ensino aos pais. Pode negociar parcerias com empresas privadas para a gestão de hospitais-empresa e gerir como empresas os hospitais públicos... mas não só não abdica do poder de decidir quem pode ir ao hospital A e frequentar a escola B como reforça o seu poder perante os privados ao negociar com eles as parcerias, apoios, subsídios, complementos...
Fora deste esquema maniqueísta em que faz o papel de progressista reformador o Governo não se sente à vontade. Por exemplo, já alguém ouviu uma palavra à ministra da Educaçãos sobre a adopção da TLEBS? Quase não passa um dia sem que surjam textos, comentários, opiniões, dúvidas sobre a fundamentação, acerto e legitimidade de imposição desta terminologia nos ensinos básico e secundário. Mas até agora o ministério da Educação permanece mudo e quedo.
Não por acaso nos últimos anos, as grandes crises governamentais e as consequentes acusações de intervenção dos executivos na comunicação social tiveram como pano de fundo factores naturais como as cheias ou os incêndios. O imprevisto e não as oposições deitam abaixo os governos em Portugal. Por isso, comamos croquetes. Que o tempo não vai para chocolates.

*PÚBLICO, 16 de Dezembro