21.2.07

REalidade virtual*

No referendo ao estatuto da Andaluzia a abstenção quase atingiu os 67 por cento. Contudo a discussão dos líderes políticos em torno deste estatuto foi gigantesca. Na verdade quase tão gigantesca quanto a abstenção. E se da Andaluzia passarmos para Portugal, França, Brasil... encontraremos este mesmo abismo entre as preocupações dos povos e a agenda que lhes é imposta pelos seus dirigentes. De alguma forma o ex-libris desta clivagem entre o mundo visto a partir dos gabinetes governamentais e das casas das pessoas comuns foi o referendo sobre a limitação da aquisição de armas que teve lugar no ano de 2005, no Brasil.###
O resultado foi devastador: 63, 94 por cento dos brasileiros respondeu negativamente à pergunta «O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?» Os brasileiros não têm certamente nenhum interesse perverso no comércio e posse de armas mas é preciso desprezar absolutamente quer a violência de que são vítimas quer a inoperância das forças policiais para supor que eles iriam responder a esta pergunta tal como se vivessem na Suécia ou em Portugal.
Na UE as perguntas felizmente são de outra natureza mas vale a pena interrogarmo-nos se, à excepção da nomenclatura bruxeleense, existirá algum cidadão da UE que sinta necessidade duma Constituição Europeia? Ao contrário do que se diz os eleitores não estão desinteressados. Simplesmente não reconhecem interesse naquilo que lhes é proposto. Ou pior ainda começam a entender que aquilo que de facto os preocupa como a segurança social, o serviço nacional de saúde, a carga fiscal ou a política de segurança pública não é colocado sequer à sua discussão quanto mais ao seu escrutínio directo. Aliás o receio que os portugueses impusessem assuntos excêntricos aos das reluzentes agendas partidárias levou à exigência de 75 mil assinaturas para que uma proposta de referendo seja simplesmente apresentada à AR, que pode sempre rejeitá-la, enquanto bastam 7.500 assinaturas para se constituir um partido ou formalizar uma candidatura à Presidência da República. Suponhamos que em vez do faz de conta do costume, os portugueses eram solicitados a discutir o futuro da segurança social. Por exemplo, perguntar-lhes se preferem manter o actual status quo mesmo que isso implique situações futuras de ruptura. E porque não discutir com as populações o fecho ou a manutenção de esquadras?
Mas podemos ficar pelo 'suponhamos' porque nessas matérias tal como noutras quer os sucessivos governos quer as sucessivas oposições esperam que nos mantenhamos suficientemente distraídos com a realidade virtual que diariamente nos recomendam.

*PÚBLICO, 19 de Janeiro