5.3.04

A subjectividade parlamentar do clítoris

Leio e não acredito. A propósito da discussão na Comissão de Assuntos Constitucionais da AR de um projecto do CDS/PP que prevê penas de prisão de 2 a 10 anos para quem pratique mutilação genital feminina, o debate centrou-se na eventual dispensabilidade do clítoris dada a sua insuficiência útil na "função reprodutiva":

«Para o CDS-PP, que na discussão de ontem se fez representar pelo deputado Miguel Paiva, a importância do clítoris é, conforme o próprio disse ao PÚBLICO, "algo subjectiva". O deputado reconhece que tem uma função essencial no prazer sexual mas "para além disso a sua mutilação não afecta nenhuma função vital", nomeadamente, como sublinha, "a função reprodutiva".

Deste modo, a bizantinice atingiu fortemente o Parlamento português, já que as elucubrações argumentativas dos deputados visavam este «cerne da questão: o clitóris é "importante"? E pode ser considerado "um órgão ou membro"? "É duvidoso", reconhece Miguel Paiva, ao defender o projecto. Por isso o CDS/PP vai levar o projecto ao plenário, até porque isso representa, segundo explica o deputado, "um sinal claro" às comunidades que praticam em Portugal a mutilação genital feminina, de que tal prática é criminosa».

A intenção do projecto é louvável. A perspectiva multiculturalista que antagoniza é irremediavelmente condenável.

Mas discutir de modo pretensamente sério se a amputação do clítoris constitui uma forma de «ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa por forma a privá-lo de importante órgão ou membro ou a desfigurá-lo grave e permanentemente» coloca os nossos parlamentares perigosamente perto do ridículo ou da - como diria FJV - elocubração adversativa.

Sobretudo se forem homens a reflectir e a decidir sobre assuntos desta natureza.

Então só é ofensa grave o que afecta a saúde e o corpo de alguém privando-o de órgão ou membro ou desfigurando-o se afectar a capacidade reprodutora??? Dever-se-á menorizar a amputação do clítoris porque este não exerce nenhuma função vital?

Senhores deputados que se dedicam a tão profundas meditações: com perdão de má palavra, dediquem-se com igual afã a actividades de auto-recreio com os vossos órgãos ou membros eventualmente não desfigurados e alegadamente capazes de cumprir a função reprodutora, e, por favor democrático, deixem a questão da natureza utilitária dos clítoris em paz!!!