21.4.07

E o Gil Vicente podemos ler?

Tanto que Brízida Vaz se embarcou, veo um Judeu, com um bode às costas; e, chegando ao batel dos danados, diz:

JUDEU
Que vai cá? Hou marinheiro!

DIABO
Oh! que má-hora vieste!...

JUDEU
Cuj'é esta barca que preste?

DIABO
Esta barca é do barqueiro.

JUDEU.
Passai-me por meu dinheiro.

DIABO
E o bode há cá de vir?

JUDEU
Pois também o bode há-de vir.

DIABO
Que escusado passageiro!

JUDEU
Sem bode, como irei lá?

DIABO
Nem eu nom passo cabrões.
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JUDEU
Eis aqui quatro tostões e mais se vos pagará. Por vida do Semifará que me passeis o cabrão! Querês mais outro tostão?

DIABO
Nem tu nom hás-de vir cá.

JUDEU
Porque nom irá o judeu onde vai Brísida Vaz? Ao senhor meirinho apraz? Senhor meirinho, irei eu?

DIABO
E o fidalgo, quem lhe deu...

JUDEU
O mando, dizês, do batel? Corregedor, coronel, castigai este sandeu!

Azará, pedra miúda, lodo, chanto, fogo, lenha, caganeira que te venha! Má corrença que te acuda! Par el Deu, que te sacuda coa beca nos focinhos! Fazes burla dos meirinhos? Dize, filho da cornuda!

PARVO
Furtaste a chiba cabrão? Parecês-me vós a mim gafanhoto d'Almeirim chacinado em um seirão.

DIABO
Judeu, lá te passarão, porque vão mais despejados.

PARVO
E ele mijou nos finados n'ergueja de São Gião!

E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor! E aperta o salvador, e mija na caravela!

DIABO
Sus, sus! Demos à vela! Vós, Judeu, irês à toa, que sois mui ruim pessoa. Levai o cabrão na trela!


in Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente