«O líder do PSD foi sondado pelo Governo sobre a possibilidade de socialistas e sociais-democratas se entenderem para dispensar o referendo ao futuro Tratado Constitucional Europeu.» - se esta notícia publicada pelo 'Diário de Notícias' não for uma mentira do 1 de Abril então estamos perante uma tentativa gravíssima mas infelizmente não inédita de fazer engenharia eleitoral.
Por outras palavras após a vitória de Salazar num concurso televisivo, o primeiro-ministro resolveu dar um prémio de consolação ao segundo classificado, Álvaro Cunhal, e ressuscitou o PREC. Tentar evitar a realização das eleições prometidas logo a 25 de Abril de 1974 e, na impossibilidade de as evitar, desvalorizá-las foi uma das estratégias do PCP. Esta estratégia passava por vários campos. Um deles consistiu no apelo ao voto em branco nas eleições para a Constituinte que tinham data marcada para o dia 25 de Abril de 1975. Publicações oficiais faziam claramente a apologia do voto em branco: «É pois necessário deitar o voto na urna, mas esse voto pode ir em branco, isto é, sem referência a qualquer partido, pois deste modo cumprimos o nosso dever de patriotas sem violentarmos a nossa consciência, nem possivelmente voltarmos essa arma contra nós próprios, seguindo aqueles que pretendem continuar a explorar a nossa ignorância politica.» – escrevia-se a 8 de Abril de 1975, escassas semanas antes das eleições para a Assembleia Constituinte, no 'Boletim 25 de Abril', editado em nome do MFA.###
O que levara a este volte-face do MFA? A convicção de que o povo não ia votar 'como devia'. Ou seja, quanto mais se aproximava a data das eleições mais claro se tornava que o PCP e o MDP-CDE não iam ter resultados eleitorais que legitimassem o Processo Revolucionário em Curso. Como bem sabia e escrevia a 5ª Divisão, encarregue da propaganda da ala do MFA afecta ao PCP: «O voto em branco foi portanto, sugerido, em último recurso, depois de se ter concluído que a massa dos eleitores estava entendendo a proclamada opção socialista do MFA como indicação de voto no Partido Socialista; e que esta organização partidária, à medida que a campanha eleitoral se aproximava do seu termo, deixava acentuar as dúvidas quanto à fidelidade ao seu próprio programa, e ao pacto firmado com o MFA.»
Apesar de tudo as eleições aconteceram e o seu resultado, dando a vitória ao PS e colocando o PPD em segundo lugar, levou a que alguns não hesitassem em classificá-las como 'infelizes eleições'. Outros mais pragmáticos passaram então a reivindicar a existência duma dinâmica revolucionária, um processo já em marcha que, de modo algum, podia ser atrasado por uns votos efectuados por pessoas pouco esclarecidas. O voto, acto individual, pouco valia perante a magnitude das massas e a inevitabilidade do processo. Como explicava o então primeiro-ministro, coronel de engenharia Vasco Gonçalves «nós não poderíamos, repito, ir perder por via eleitoral aquilo que tanto tem custado a ganhar ao Povo Português.»
Deite-se fora o palavreado do homem novo e do processo revolucionário e encontramos na questão da constituição europeia a mesma ideia de que existe uma dinâmica que já nada pode travar. E se por acaso alguns povos não votam como devem então há que contornar esse voto. Dispensando-o, por exemplo.
A prosseguirem neste caminho, os dirigentes da UE correm o risco de tornar a Europa uma abstracção muito mais excêntrica aos povos que a constituem do que essa Cuba da Europa que os defensores do 'socialismo à portuguesa' se propuseram construir neste rectângulo, nos idos de 1975.
*PUBLICO, 2 de Abril