11.4.07

A folga*


Quando, em Fevereiro último, Carmona Rodrigues arrancou alguns cartazes 'ilegais' tomou aquela que foi provavelmente a sua medida mais consensual nesses dias. Expressões como poluição visual e publicidade dispensavam de maiores explicações todo aquele aparato nocturno para arrancar meia dúzia de papéis. Muito didacticamente no site da CML até se dão exemplos de publicidade ilegal. http://www.cm-lisboa.pt/?id_item=13753&id_categoria=11
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Ver esses exemplos é uma espécie de visita guiada ao universo do que se entende por legalidade quer na CML quer nas outras autarquias: no muro enegrecido dum viaduto, rematado por um passeio ornamentado com algum lixo e num prédio entaipado alinham-se cartazes que anunciam espectáculos ou um novo cd. O outro exemplo de publicidade ilegal apresentado no site da CML leva-nos a um passeio genuinamente lisboeta: o chão infecto, um montinho de pedras soltas de calçada e claro uma caixa dita de mobiliário urbano em cujo interior se alinham fios e mais fios. A caixa está coberta por aqueles inevitáveis panfletos que ora divulgam umas conferências do oculto ora uns espectáculos também meio ocultos dado o pouco interesse que costumam suscitar. E foi contra estes cartazes e panfletos, e não contra o lixo no chão, os prédios entaipados e o mobiliário urbano que atravanca os passeios quando não impede a circulação dos peões, que a CML legislou e actuou. Note-se que já no final de 2006 a mesma autarquia se tomara de zelos contra a publicidade afixada nos tapumes das obras defendendo que ela deveria ser arrancada diariamente. Quanto às lonas afixadas nos prédios em ruínas também foi decidido que estas não só não poderiam incluir mensagens publicitárias como deveriam representar os ditos prédios não no miserável estado a que chegaram mas sim na versão reconstruída ou nunca degradada.
Daí que quando Rui Tavares escreve 'o cartaz dos Gatos Fedorentos pode não ser propaganda partidária mas não é certamente publicidade; é antes enquadrável como intervenção artística e deveria ser interpretada com a folga que a lei permite' eu não possa estar mais em desacordo no que respeita ao apelo às folgas da lei e à intervenção artística que legitimará essa folga. Não só essa folga deixa ao critério do poder político a distribuição do invejável estatuto de excepção – enquanto oficialmente vigora a regra duma lei injusta e frequentemente quase inaplicável – como muito menos me parece que o conceito de 'intervenção artística' seja para aqui chamado. Se é que alguma vez deve ser chamado.
O que o episódio do cartaz dos Gatos Fedorentos veio mostrar foi precisamente que se deixou passar em claro legislação muito restritiva sobre a afixação de propaganda e publicidade – e em alguns sectores pede-se mesmo um maior controlo sobre os conteúdos dessa mesma publicidade – porque a par duma crença ilimitada no poder genesíaco das leis se juntava a convicção de que todo aquele articulado jamais se aplicaria a cada um de nós ou às causas que apoiamos.
Por ironia o cartaz dos Gatos Fedorentos acabou não apenas a desmontar o argumentário do PNR mas também a evidenciar o reino do absurdo da chamada legalidade municipal. Um reino onde cada cidadão acredita poder respirar na “folga que a lei permite” entre 83 regulamentos. Um reino onde cada um acredita poder sobreviver “folga que a lei permite” desde que se oriente no dédalo das mais de mil taxas que se alinham nas 64 páginas do Boletim Municipal nº 595 e estabelecem a fronteira entre o legal e o ilegal nesta cidade.



*PÚBLICO, 10 de Abril