8.4.07

gloriosa e invejada



A ideia do Estado como motor da transformação social. A reforma salvadora que faz tábula rasa do passado e, num golpe, se propõe colocar o país entre os melhores. A lei como instrumento de mando e instrumento privilegiado para mudar a sociedade. A intolerância radical, a submissão de todo o espírito crítico, e a crueldade praticadas como razões de Estado.

Estas são ideias que já vinham de trás, mas a que o Marquês de Pombal deu a sua expressão máxima. Elas continuam aí, como um fantasma que habita em cada homem, e as estátuas do Marquês em cada vila e cidade do país, estão lá para nos relembrar que é assim que deve ser.###

Dentre as reformas empreendidas pelo Marquês, a mais conhecida é provavelmente a reforma do ensino. Pombal começou pela reforma dos Estudos Menores (1759), equivalente aos actuais estudos secundários. Não se estruturava qualquer grau de ensino, antes se prescrevia um conjunto de matérias, e um método, para ensinar a mocidade. Os professores não podiam afastar-se nem um milímetro dos programas e do método que eram prescritos, sob pena de serem demitidos e sofrerem "as mais penas que forem competentes". Para controlar o ensino, a reforma criava o lugar de Director de Estudos, directamente dependente do poder pessoal do Marquês. Em 1772, Pombal extingue este cargo e o ensino secundário passa a depender directamente da Real Mesa Censória.

Nos estudos superiores, Pombal extinguiu a Universidade de Évora e deixou apenas uma - a de Coimbra - para melhor a controlar. Reformou-a. E se, nos séculos anteriores, a Universidade de Coimbra - e também a de Évora - pela mão de eclesiásticos dominicanos, franciscanos e jesuítas constituia um dos poucos espaços de liberdade existentes na sociedade portuguesa, e independente do poder régio, de tal maneira que chegou a alcançar uma certa reputação internacional, a partir de Pombal a Universidade de Coimbra passou a ser um braço da administração pública, uma burocracia intelectual sob o comando do poder régio - uma tradição da qual nunca mais se libertou e que viria a legar, séculos e meio depois, às Universidades de Lisboa e Porto.

A reforma de Pombal (1772) divide a Universidade de Coimbra em seis Faculdades, Teologia, Cânones, Leis, Medicina, Matemática e Filosofia. As duas últimas foram criações de Pombal e na Faculdade de Filosofia eram ensinadas as novas ciências naturais. Para cada uma das Faculdades, os novos Estatutos previam tudo ao mais ínfimo detalhe - programas, bibliografia, métodos de ensino - acautelavam tudo, condicionavam tudo, abafavam tudo, ao ponto de estabelecerem que "não pretenderá (o Professor) saber nem ensinar mais do que convém que ele saiba e ensine". Para se certificar que nada nem ninguém se afastava da norma estabelecida, o próprio Marquês se nomeou a si próprio Reformador-Visitador da Universidade, e a sua autoridade máxima.

Quando regressou a Lisboa, vindo de Coimbra, onde foi adjudicar os novos Estatutos à Universidade e onde permaneceu um mês no meio da maior pompa e circunstância, Pombal escreveu ao reitor que a Reforma iria "fazer Coimbra gloriosa e invejada por todas as outras Universidades da Europa"

Esta reforma grandiosa do ensino, porém, em muitos dos seus aspectos e naquele que mais interessava - educar a mocidade e prepará-la para a vida de acordo com as realidades do país - foi um enorme fracasso. Nos Estudos Menores, em 1779, vinte anos após a entrada em vigor da Reforma, e já no reinado de D. Maria I, não existia uma única cidade no país - nem mesmo Lisboa - onde se ensinassem todas as disciplinas do seu programa curricular (Filosofia Racional, Retórica, Língua Grega, Gramática Latina e Desenho). Na maioria dos casos, só era leccionada a Gramática Latina. A razão era a falta generalizada de professores qualificados.

Se nos Estudos Menores, faltavam os professores para dar realidade à reforma de Pombal, na Universidade de Coimbra as coisas eram ainda piores: faltavam os professores e também os alunos. Num relatório apresentado a D. Maria I, já depois da queda do Marquês, sobre os primeiros cinco anos da reforma pombalina, o reitor afirmava que na Faculdade de Teologia se tinham inscrito, em cada um desses anos, 7, 4, 2, zero e 8 alunos; na Faculdade de Matemática , matricularam-se 8 estudantes no primeiro ano, dos quais faleceu um e desistiram dois; no segundo ano, matricularam-se dois, mas só um apareceu; no terceiro, quarto e quinto anos, não se matriculou nenhum. Na Faculdade de Filosofia (História Natural, Física e Química) só se matricularam 4 alunos nos primeiros cinco anos. Na Faculdade de Medicina, o problema, diz o reitor, "é a grande falta de estudantes". Até na Faculdade de Leis, cuja frequência média era de 3 mil alunos por ano antes da Reforma, existiam agora apenas quinhentos. Mas aqui, segundo o reitor, há males que vêm por bem, pois o excesso de formados nesta área era causa de grande perturbação: "toda esta tropa de formados saía da Universidade a levantar e acender (discórdias) nas Cidades, nas Vilas e nos Lugares". *

Depois da reforma do Marquês nunca mais a Universidade portuguesa teve projecção no estrangeiro, como centro de criatividade e investigação, foro livre de discussão das ideias e de avanço das ideias. Neste, como em vários outros aspectos, a reforma do Marquês - cujo espírito está ainda presente nas Universidades do país - foi um enorme falhanço e um pesadelo. Porém, um resultado o Marquês conseguiu na Universidade - o de formar as futuras elites do país de acordo com as suas próprias ideias e largamente à sua imagem e semelhança - uns verdadeiros filhos do Marquês. Por virtude da natureza do seu saber, os juristas viriam a ocupar um lugar de relevo nas gerações futuras.

* Rómulo de Carvalho, História do Ensino em Portugal, Lisboa: Fundação C. Gulbenkian, 1985, pp. 485-506.