23.11.07

Não deixe lá (II)*

Durão Barroso percebeu que apenas se pode falar publicamente de defesa desde que daí não venham más notícias e fotografias incómodas.
Na verdade não mudámos muito desde o tempo em que no Boletim das Forças Armadas, na RTP, soldados algures em África repetiam numa dramática cantilena 'Votos de Feliz Natal e muitas prosperidades'. A ditadura atirava para as páginas interiores dos jornais os comunicados das Forças Armadas que constituíam quase exclusivamente a única informação sobre o que acontecia às tropas portuguesas em Angola, Moçambique e Guiné. Simultaneamente os portugueses eram atulhados com imagens sobre o Vietnam e instilava-se a ideia de que a 'nossa guerra' era diferente. Quiçá uma espécie de passeio a África para jovens que doutro modo não passariam de Lisboa. A invisibilidade da guerra surgia ao regime como uma estratégia de sobrevivência. Na democracia, que significativamente os portugueses associam ao fim da guerra, a dificuldade em lidar com o assunto não tem sido menor.
Quando após o 25 de Novembro de 1975, os militares regressaram aos quartéis donde tinham saído em 1926 e 1974 para marcar as datas cruciais da História portuguesa do século XX, deixando assim de ser o braço armado ou o apoio expressivo de antagónicos líderes civis, a simples existência das forças armadas e dos seus sempre incómodos orçamentos tornou-se difícil de explicar. ###
Vistas como uma sobra dispendiosa e anacrónica dum passado ditatorial que se quer esquecer e dum breve período revolucionário, as forças armadas sobreviveram como instituição mas para isso tiveram de se transformar no imaginário dos portugueses.
O serviço militar obrigatório terminou. E até que, em 1996, um contingente português com 912 voluntários partiu para o Kosovo, quase fomos levados a acreditar que todos os conflitos se resolveriam com o envio de observadores, equipas médicas e capacetes azuis. Não admira assim que em termos de informação sobre o que nos leva a esses cenários tudo se resuma à inevitável reportagem sobre o ainda mais inevitável bacalhau com couves que as nossas tropas comem desde a Jugoslávia ao Líbano.
Portugal partilha com várias democracias esta identificação entre forças armadas e uma ONG vestida de camuflado, que não combate antes faz missões de paz. E os sucessivos governos portugueses não estão sozinhos nem na incapacidade de assumir perante as respectivas opiniões públicas que se enviam soldados para cenários muito perigosos nem no temor que um qualquer episódio de urânio empobrecido, ataque ou acidente despolete uma grave crise política. A mentira e a retirada acabam assim por se tornar duas étapas quase incontornáveis das operações militares. A manipulação de histórias sobre massacres na antiga Jugoslávia e armas de destruição maciça no Iraque foram usadas para tornar aceitáveis intervenções bélicas que doutro modo não se conseguiriam fazer passar junto das opiniões públicas das democracias.

Obviamente que povos a quem não se fala a verdade sobre estes assuntos e que, sobretudo na Europa, gostam de acreditar que paz e pacifismo são sinónimos não são de modo algum capazes de suportar a verdade da guerra.Mais do que o Iraque, o Afeganistão pode vir a ser a principal vítima do trompe l'oeil a que chamamos defesa : vários dos países que apoiaram a invasão estão a retirar as suas tropas. Fazem-no discretamente e antes que algo de grave aconteça com algum dos seus contigentes. Nesse dia deixariam de poder responder "Deixe lá..."

*PÚBLICO, 22 DE NOVEMBRO