16.1.08

A Lusoponte, O Concedente e os Outros

 

Hoje, no Público, os bocadinhos que todos os dias vão pescar aos blogues versam o tema da Lusoponte, do escândalo, disto e daquilo. Todos no mesmo sentido e todos errados. Este artigo de Mário Crespo, por exemplo, tão citado nos últimos dias, tem tantas incorrecções que só demonstra que em história, uma década é uma eternidade para o esquecimento.

 

Em 1991, o governo de Cavaco Silva lançou um concurso público internacional para a construção de uma ponte entre Sacavém e o Montijo. O caderno de encargos previa, entre outros pressupostos, que o vencedor ficaria com o monopólio da travessia rodoviária do Tejo por ‘x’ anos. Os concorrentes seriam seleccionados, em função de algumas variáveis, entre elas, os preços a praticar nas portagens das duas pontes e o montante de apoios pedidos ao estado. Não me recordo se o prazo também era uma das variáveis em jogo (*). 

 

Dos concorrentes iniciais (4, salvo erro) foram pré-seleccionados 2 para a fase de negociação final. Um liderado pela construtora inglesa Trafalgar House e outro liderado pela francesa Bouygues. Nesta fase, os dois consórcios gastaram muito dinheiro. Os custos com a banca de investimentos, gabinetes de estudos, advogados e projectistas eram tão elevados que havia um compromisso do vencedor indemnizar o derrotado.

 

Após uma disputa ao sprint, o consórcio liderado pela Trafalgar House foi declarado vencedor, entre outros motivos, porque pediu menos dinheiro ao estado do que os outros interessados.  

 

O consórcio vencedor ganhou obrigações e direitos. Por um lado, a obrigação de investir num Project Finance de 900 milhões de euros e de garantir a manutenção das duas pontes durante todo o prazo de concessão. Do outro lado, o direito a cobrar portagens, a preços de concurso, em regime de monopólio, desde a foz do Tejo até 30Km para jusante e o direito a uma comparticipação pública que representava cerca de 25% do valor do projecto.

 

A complexa montagem financeira desta operação, decorreu tal como previsto na proposta vencedora. Cerca de 1/3 do financiamento foi um empréstimo do Banco Europeu de Investimentos, cujo risco foi integralmente coberto por um sindicato de bancos comerciais. Outro terço foi entregue pelo Fundo de Coesão. O restante, e que em parte decidiu o concurso, é a repartição entre capitais accionista (cerca de 60 milhões, se a memória não falha) e a comparticipação do estado que, conforme constava do caderno de encargos, incluía a entrega da ponte 25 de Abril, cujo valor não me recordo mas não chegava para cobrir nem 10% dos investimentos. Nesta altura partia-se do princípio que os preços das portagens nas duas pontes seriam iguais ao longo de todo o período de concessão. 

 

A ponte foi construída pelo ACE das empresas vencedoras. Acabada a obra, constituíram uma empresa chamada Lusoponte onde parquearam as concessões. 

 

Uma das grandes dificuldades associadas à montagem financeira deste tipo de projectos é a cobertura de risco. Estamos perante um Project Finance – não há risco adicional para os accionistas para lá do Capital Social realizado. Se a Lusoponte não pagasse ao BEI, seriam os bancos comerciais a fazê-lo – CGD à cabeça. As condições do sindicato financeiro, como é óbvio, impunham que todo e qualquer risco fosse identificado e para cada tipo de risco estivesse prevista uma cobertura adequada. Para muitas categorias de risco, as seguradoras servem. Para outras categorias, não. Por exemplo, para o risco político. Os governos, atacados pelo vírus do populismo, pretendem muitas vezes alterar aquilo com que se comprometeram, os partidos de poder mudam, os políticos fazem promessas fáceis porque são pagas com o dinheiro dos outros.

 

Todos nos lembramos das manifestações, do buzinão e de um líder socialista (hoje gestor de topo de um dos bancos que financia a Lusoponte) passar a portagem sem pagar. Guterres cavalgou a contestação e mal chegou ao poder, resolveu que as portagens da Ponte 25 de Abril não subiriam de acordo com o previsto. Como é óbvio, se no concurso não se estabelecessem regras claras quanto à portagem da Ponte 25 de Abril, as comparticipações exigidas ao estado teriam sido muito maiores. As duas pontes estão em concorrência e as previsões de tráfego dependem não só dos preços praticados mas também da relação de preço entre ambas. O risco de algo deste género acontecer, estava muito bem protegido nos contratos, quer no de concessão, quer nos contratos de financiamento. 

 

Quando o governo quer negociar alterações, tem de negociar não só com a Lusoponte, mas também com os sindicatos bancários cujos membros ficam com as costas a arder se o negócio der para o torto. Neste caso, o sindicato tinha mais de uma dúzia de membros, e todos eles tinham uma palavra a dizer. Todos podiam dizer não. 

 

Para conseguir um acordo que lhe permitisse mostrar a sensibilidade social de um governo que se diz socialista, Guterres empurrou a concessão à Lusoponte para 2030 e baixou o IVA (isto é, aumentou o montante recebido por veículo pela Lusoponte). Foi isto que a Lusoponte e a banca aceitaram. E aqui, não houve concurso público, para encontrar a solução mais barata. O governo apenas deu. Mas, aquilo era o governo de Guterres, dar era o verbo mais conjugado e ainda hoje estamos a pagar a factura de tantas dádivas.

 

E isto é um resumo da história que tantos demonstram ignorar. É apenas de memória, espero que me perdoem eventuais incorrecções. Não serão muito significativas. 

 

Hoje temos uma ponte porque os privados que a construíram, sem derrapagens, se atiraram para a frente, compraram-na em leilão. Os protestos a 15 anos de distância, sugerem que teríamos a mesma ponte sem os custos que tiveram de ser suportados para a ter. Almoçámos e agora protestamos pela factura, ignorando os preços que vinham na ementa.

 

Sobre Ferreira do Amaral, se eu fosse accionista da Lusoponte também o contrataria. A competência é um bem escasso, por estas bandas. 


(*) Update: Estabeleceu-se no contrato que a concessão terminaria quando as pontes fossem atravessadas por 2.250 milhões de veículos.