no âmbito do Serviço Nacional de Saúde. Nas listas de espera para
intervenções cirúrgicas destinadas a resolver situações tão distintas
quanto os problemas de coração ou a substituição de próteses da anca
os fumadores poderão ver passar à sua frente os não fumadores. O mesmo
tratamento diferenciado para os fumadores pode vir a ser aplicado
naquele país nos casos em que se ponderar a opção por novos
tratamentos ou terapêuticas consideradas dispendiosas.
Por cá, e para lá da polémica sobre os procedimentos necessários para
que os cidadãos comuns possam gozar dos mesmos privilégios tabágicos
reconhecidos aos presidiários, jogadores e doentes mentais - grupos
que, a par do director da ASAE, gozam dum benemérito estatuto
excepcional -, já encontramos o ser ou não fumador como critério de
avaliação laboral. Por exemplo, a TAP, nos anúncios recentes
destinados a contratar comissários e assistentes de bordo, apresenta
três factores preferenciais que irá ponderar quando avaliar os
candidatos. Dois desses factores têm uma relação directa com a
actividade em causa: experiência profissional aeronáutica reconhecida
e bom domínio duma língua estrangeira além dos obrigatórios inglês e
francês. O terceiro factor esse é nem mais nem menos do que ser não
fumador. Sendo certo que não se pode fumar a bordo, o que pode levar a
excluir uma pessoa por ela fumar em terra, no aconchego da sua casa? E
não se deveriam excluir também aqueles que suspiram por um café decente?
A TAP apesar de tudo ainda não exclui, pelo menos publicamente, a
possibilidade de vir a contratar fumadores. Apenas os atira para o fim
da lista. Já a Organização Mundial de Saúde há dois anos que anunciou
que não contrataria mais fumadores. Na fila, à espera da sua vez para
serem o próximo grupo-alvo da fúria normalizadora estão já os obesos.
Rui Tavares invoca santa Radegunda e chama sonsos àqueles que usam o
termo totalitário ou fascista para classificar este tipo de medidas.
Ora entre aquilo que os totalitarismos nos ensinam está não só que as
políticas públicas de saúde podem ser usadas para controlar as
populações mas também que a defesa da saúde é um excelente
argumentário para que essas mesmas populações aceitem a discriminação
ou a eliminação daqueles que são considerados disformes, viciosos ou
impuros. Assim, tal como muitas das mais iníquias medidas dos
totalitarismos foram sancionadas pelo ideário da defesa da saúde,
também agora algumas das medidas que por esse democrático mundo se
ponderam ou já aplicam contra os fumadores dificilmente seriam
sancionadas caso não surgissem revestidas da mágica palavra-passe:
saúde.
Com os sistemas de financia-mento da segurança social à beira da
falência, as democracias estão a adoptar procedimentos que legitimam a
exclusão de alguns grupos do universo dos beneficiários.
Simultaneamente na área fiscal e de controlo de verbas adoptam-se
mecanismos de legitimidade muito duvidosa como a publicação de listas
de devedores ou, como também está ser testado em Inglaterra, a
inclusão de detectores de mentiras durante as entrevistas aos
candidatos a apoios sociais.
Na Europa ocidental, e felizmente em boa parte do restante mundo, o
totalitarismo é passado. Mas do nosso presente faz parte um Estado
social que, em momentos de crise, não hesita em adquirir traços dum
Estado policial. E, tal como no passado, se nos disserem que é a bem
da nossa saúde haverá quem ache que a saúde está acima de tudo.
*PÚBLICO 9 de Janeiro