A terra tremeu no sul da Península Ibérica no dia 12 de Fevereiro. Como na véspera os portugueses tinham maioritariamente votado Sim no referendo sobre o aborto, e sendo notório que esse Sim era contrário ao ‘Não’ defendido pelo Vaticano, não faltou quem rapidamente interpretasse esses movimentos da terra como um sinal do desagrado divino.###
Em 2007, em Portugal, estes jogos de palavras não resultam em mais nada além de piadas melhor ou pior conseguidas. Mas noutros tempos, ou hoje ainda noutras culturas, os humanos pecados explicavam e explicam a fúria dos elementos. Foi assim em Sodoma e Gomorra. Foi assim em Lisboa após a catástrofe de 1755. E é assim agora. Por exemplo, aquando do tsunami do Natal de 2004, um professor saudita, Al-Fawzan, explicou aquela catástrofe como um castigo de Alá que assim punia «a homossexualidade e a fornicação» praticadas, segundo ele, em larga escala na época do Natal nas zonas afectadas.
Não fosse o enorme sofrimento que estas concepções do universo nos causaram e causam e quase daria para as acolher com um sorriso. Mas não só tal resposta tem implícita uma bonomia desajustada como subestima o facto de nos defrontarmos hoje com uma reactualização tecnocrática do conceito de pecado. Por outras palavras, as mesmas sociedades que actualmente sorriem ao ouvir as explicações de Al-Fawzan ou as interpretações do desgraçado Malagrida no seu «Juizo da verdadeira causa do terremoto que padeceo a corte de Lisboa» acolhem com uma atitude igualmente supersticiosa as explicações sobre os novos apocalipses que o seu comportamento vai provocar.
Neste início do século XXI, onde outros colocavam a vontade de Deus coloca-se agora o equilíbrio da Terra. Onde outros colocavam o pecado, coloca-se agora o desenvolvimento.
Em Portugal esta nova versão do castigo que já foi de Deus e agora é da Terra atinge foros de delírio místico. No Verão, temos o inferno dos fogos. No Inverno, o purgatório das cheias ou do mar galgando as arribas. Como bons fiéis que somos, para tudo isto arranjámos uma explicação que nos transcende e desresponsabiliza: as alterações de clima.
É certamente tentador acreditar, tal como se ouviu este Inverno em Portugal, que «os gelos derretem naqueles sítios e fazem o mar subir» na Costa da Caparica. Porém é mais útil descer do domínio do pecado para o da responsabilidade.
Na costa portuguesa construiu-se e constrói-se nas falésias e dunas. Fizeram-se barragens e extraíram-se areias como se tal actividade não tivesse qualquer impacto nos rios e na costa. A isto junta-se uma enlouquecida máquina administrativa que, apenas para o litoral, como o «Expresso»recordou este fim-de-semana, conta com 105 entidades. Logo 105 presidentes para dar autorizar, fiscalizar, multar... 105 entidades responsáveis não por uma catástrofe que pode ou não vir a acontecer mas por um desastre que já aconteceu, está a acontecer e vai continuar a acontecer. Não por castigo de Deus ou da Terra. Mas sim por parvoíce nossa.
*PÚBLICO, 5 de Março.