Os déspostas, como toda a variedade de ditadores, precisam, em primeiro lugar, de homens de leis. Não se manda executar um adversário político, e não se lhe confisca a riqueza, sem, ao mesmo tempo, camuflar a iniquidade com um processo legal.###
O Marquês de Pombal deixou na Universidade de Coimbra seis Faculdades. Poucos anos após a sua morte, quatro dessas Faculdades praticamente não tinham alunos. E as duas que os possuíam e, em conjunto, os possuíam às centenas e até aos milhares - a de Cânones e a de Leis - formavam ambas juristas. Os dois primeiros anos dos seus respectivos currículos eram iguais e só se diferenciavam a partir do terceiro ano, a primeira especializando em Direto Canónico, a segunda em Direito Civil. A semelhança era tal que em 1836 estas duas Faculdades se fundiram numa só - a actual Faculdade de Direito.
Durante século e meio em Portugal a produção de universitários no país vai ser feita em regime de monopólio pela Universidade de Coimbra e, pela dominância esmagadora dos seus números, a Faculdade de Direito irá governar como raínha.
Reflectindo as concepções emergentes na época, o Marquês tinha imprimido à Reforma da Universidade uma especialização e uma certa concepção profissionalizante. Da Faculdade de Medicina sairiam os médicos da Nação; da Faculdade de Teologia, os eclesiásticos; das Faculdades de Matemática e de Filosofia, onde se ensinavam as ciências naturais, iriam sair os cientistas de que o país necessitava. Da Faculdade de Direito sairiam os homens de leis, os homens destinados à governação do país, ao exercício das profissões judiciais e aos altos cargos da administração pública.
Na prática, porém, e em termos comparativos, da Universidade de Coimbra não saíram nem muitos médicos, nem muitos eclesiásticos, nem muitos cientistas. Sairiam sobretudo juristas e a vida pública portuguesa iria ser dominada por juristas durante os séculos seguintes.
O Marquês, ele próprio tinha sido, na sua juventude, estudante de Direito em Coimbra, embora nunca tivesse concluído o curso. Quando, após a reforma, ele se nomeou a si próprio a autoridade máxima da Universidade, ele sabia a importância do lugar e os terrenos que pisava. Pelo seu exemplo de governação que durou quase 30 anos, ele poderia transmitir aos futuros governantes do país aquilo que tinha em vista.
Os Estatutos da Universidade previam ao detalhe, para cada um dos cursos, tudo aquilo que se poderia ensinar e o que não se poderia ensinar, os métodos de ensino, os programas, a bibliografia; eles acautelavam tudo, consideravam tudo, regulavam tudo. Eles transpiravam obediência e intolerância. Por essa altura, a Real Mesa Censória exercia já as suas funções com a diligência devida através de todo o país, com actividade muito intensa em Coimbra. A Universidade de Coimbra iria tornar-se um braço da Administração Pública portuguesa, fornecendo ao Estado os burocratas do espírito e os visionários da política.
Pelos seus programas, pela sua organização, pela autoridade suprema e absoluta do Marquês, os jovens juristas em formação na Universidade de Coimbra iriam interiorizar algumas ideias principais. Primeira, eles estavam destinados, em primeiro lugar, a serem funcionários do Estado e políticos; o futuro da sociedade portuguesa dependia deles e da sua visão esclarecida. Segunda, por cima da sociedade, reinava a autoridade suprema, absoluta e inquestionável do Estado que eles próprios um dia iriam comandar - e pessoalizada no exemplo pombalino de "L'État c'est moi". Terceira, a lei era um instrumento de mando e o instrumento essencial para mudar a sociedade; a sociedade avançava e modernizava-se através de reformas veiculadas pela lei e essas reformas tinham de ser, em geral, radicais e fracturantes. Quarta, os políticos e os funcionários do Estado - como o Marquês, ele próprio, sempre tinha mostrado - não tinham que obedecer à lei; a lei era para ser aplicada ao povo, não a eles. Quinta, a lei e o processo legal serviam para justificar e branquear todas as iniquidades que fossem cometidas em nome do Estado.