Para os leitores deste blogue que me têm seguido com alguma sensibilidade, deve ter parecido óbvio que eu tinha aqui, desde há uns meses, um problema sério para resolver.###
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Por um lado, numa série de posts, argumentei nessa altura que o liberalismo moderno tinha tido origem ibérica e no pensamento católico, através dos padres de inspiração tomista dos séculos XVI e XVII, agrupados nas Universidades de Salamanca, Coimbra e Évora, principalmente dominicanos, franciscanos e jesuítas. Por outro lado, para o chamado senso comum prevalecente em Portugal, este tinha sido precisamente o período de maior intolerância em Portugal e Espanha por obra de uma instituição promovida pela Igreja - a Inquisição.
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Como conciliar, então, uma Igreja liberal e, ao mesmo tempo, inquisitorial? A resposta é que a Igreja de Roma era bastante liberal na altura, relativamente a um poder temporal régio em Portugal e Espanha que era bastante inquisitorial.
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Cito a seguir o historiador britânico Paul Johnson (na citação, a expressão Spanish Inquisition refere-se à Inquisição ibérica, incluindo a espanhola e a portuguesa):
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"The Spanish Inquisition was essentially an organ of royal power, one of whose functions was ´to protect´ the Spanish Church from influence by outside agencies, including the papacy. Hence the domination of the Church by the crown was perhaps more comprehensive in Spain (and Portugal) during the sixteenth century than in any other Europe state, including those with a Protestant, Erastian system.""
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"In Spain, however, (the Inquisition) became a state instrument, almost a national institution, like bullfighting, a mystery to foreigners but popular among the natives. It is surprising how often admirable, if eccentric, individuals, were burned, not only withou public protest but with general approval."
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"During the fifteenth century the tendency had been for the reform of the Church to fall into de hands of the monarchies, the only institutions willing and able to undertake it. The outstanding example was Spain, where the union of the crowns of Castille and Aragon, followed by the creation of the Spanish Inquisition under the secular control of the monarchy, gave it more power over the Church than any other secular government possessed since the eleventh century".
(...)
"In Spain the Inquisition was part of the process whereby the Castillians penetrated and unified the whole of Spanish society (...)"
(Paul Johnson, A History of Christianity, New York: Atheneum, 1976, pp. 217, 255, 297, 306)
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Em suma:
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(i) A Inquisição foi um instrumento do poder temporal, e sob o controlo do poder temporal (e só assim se explica que fossem os reis ibéricos - em Portugal, D. Manuel I - a pedir ao Papa a sua institucionalização);
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(ii) Em nenhum outro Estado da Europa do seu tempo, como em Portugal e Espanha, o clero católico estava tão afastado de Roma e tão dependente do poder régio.
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(iii) Os autos-da-fé em Portugal e Espanha eram manifestações genuinamente populares, assim como as touradas (e as suas vítimas eram frequentemente pessoas admiráveis, embora parecendo excêntricas aos olhos da população).
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(iv) A Inquisição foi um instrumento do poder temporal utilizado com fins de unificação política.