Nos últimos meses desenvolvi uma estranha obsessão por crocodilos. Não pelos crocodilos do Nilo nem pelos aligatores do Tio Patinhas. Mas sim pelos crocodilos que o Estado português se propõe erradicar: aqueles que não pagam impostos nem direitos à Lacoste. Quase diariamente vejo os homens da ASAE ladeados por forças policiais devidamente encapuçadas e armas em punho calcorreando feiras e romarias à procura de camisolas ornamentadas com falsos crocodilos, cópias ilegais de dvd’s e cassettes piratas. ###
Estas operações são inevitavelmente acompanhadas da pedagógica reportagem sobre os portugueses. Pergunta o jornalista «Mas será que os portugueses estão devidamente sensibilizados para o facto de este ser um crime público?» O inspector interrogado responde imediatamente que os portugueses já vão estando mais sensibilizados mas que mesmo assim terão de ser muito mais sensibilizados para o crime público dos falsos crocodilos e das falsas malas.
Não sei se alguma vez algum dos leitores experimentou chamar a polícia para intervir numa situação de violência doméstica ou agressões na via pública. Como infelizmente não faltam ocasiões para o fazer, acabarão os leitores por perceber – tal como eu tenho vindo a perceber após ter resolvido denunciar um caso grave de violência que acontece na rua onde vivo – que a polícia só actua se houver flagrante delito. Na falta do flagrante delito só existe uma possibilidade para que os agressores sejam interrogados na esquadra mais próxima: que o dito agressor tente também agredir as autoridades ou que pelo menos as injurie e sobretudo que injurie a mãe da autoridade. (As injúrias à mãe da autoridade – e cada autoridade tem a sua mãe! – são um capítulo não escrito mas crucial no exercício do poder em Portugal)
A outra alternativa, que note-se cada vez encaro com maior seriedade, é tornar-me uma portuguesa sensibilizada e denunciar o dito agressor à ASAE, acusando-o de confeccionar chouriços sem licença e de vender imitações de rolexes e lacostes. Infelizmente tal não é verdade mas como a posse de material de contrafacção também é crime, e não só a sua venda, espero que no meio dos móveis partidos ainda sobrem uns dvd’s piratas e que estes ao menos justifiquem as palavras de condenação por parte da polícia e dos tribunais que não têm merecido as agressões à mãe, irmãs e vizinhos.
Moral da história ou conclusão da fábula: o Estado português exerce o seu poder duma forma socialmente injusta. Se eu vender ou comprar camisolas falsificadas as autoridades aparecem-me armadas até aos dentes. Se eu agredir alguém dizem-me que tenha calma e descanse. E se da segurança passarmos para o quotidiano cada vez mais medido e regulamentado que nos rodeia, a injustiça não é menor: é mais fácil uma grande empresa imobiliária ver licenciado um campo de golfe num parque natural do que um habitante desse mesmo parque conseguir ver aprovadas obras na sua casa.
Dizia a anedota sobre o KGB que os crocodilos podiam voar baixinho. Em Portugal polícia alguma fez voar crocodilos. Mas a diferença entre a realidade que o poder político nos anuncia e a realidade que os cidadãos comuns experimentam começa a ser tão patética quanto os crocodilos voadores da anedota.
*PÚBLICO, 28 de Maio