21.3.07

Os novos colonialistas*

Uma carta angolana não garante que se conduza adequadamente na Europa? Provavelmente. Mas saberão os cidadãos que tiraram carta em Portugal guiar na Grã-Bretanha? Ou vice-versa? Parece-me óbvio que nem tudo é claro no reconhecimento internacional das cartas de condução, mas o caso da carta de Mantorras pouco ou nada tem a ver com essa matéria. Trata-se sim duma certa forma de fazer relações internacionais.###
Como forma de represália pelo acontecido a Mantorras, vários cidadãos portugueses foram levados a tribunal em Angola porque, em escassas horas, as suas cartas de condução deixaram de ser consideradas válidas.
Cabe perguntar o que fará o governo de Luanda caso algum empresário ou político daquele país seja levado a tribunal em Portugal, por estar envolvido num caso de corrupção? O já antigo sonho luso da árvore das patacas angolana obriga actualmente os portugueses a fazerem de conta que Angola é uma espécie de democracia. Infelizmente não é. Desde a abertura de supermercados ao recenseamento eleitoral tudo na imprensa angolana é uma imensa epopeia, estilisticamente herdeira dos textos sobre a viagem «triunfal do presidente Carmona a África»: se não há eleições é porque o povo ainda não percebeu que tem de se recensear. Se existe cólera é porque o povo não está a cumprir os sábios conselhos das autoridades sanitárias...
De tal forma esta Angola imaginária está oficializada que nenhum de nós se espanta quando constata que os portugueses residentes naquele país não querem prestar declarações sobre o caso das cartas de condução e muito menos identificar-se porque temem represálias. Está implícito que, se o entender necessário, Luanda não hesitará em usar a força contra eles. Oficial ou não oficialmente. E como sempre envolvendo tudo nas roupagens do colonialismo.
Contudo nesta última matéria, a do colonialismo, o governo de Luanda tem razão. Lisboa trata duma forma colonial os povos dos PALOP. E não só. Temos uma relação colonialista com África. Esse misto de paternalismo misturado com avidez que nos leva a encarar a corrupção como uma fatalidade africana nada tem de novo. Onde os nossos avós se riram das dançarinas de mamas à mostra nós olhamos com um cinismo resignado as expropriações de terras ordenadas por Mugabe, a Guiné-Bissau tornada num entreposto de traficantes colombianos, os dirigentes sul-africanos garantindo que a SIDA não afecta os negros e que mesmo que afectasses estes se curavam com o saber dos curandeiros e, claro, a vocação empresarial da familia de José Eduardo dos Santos.
África passou do continente que os missionários e autoridades coloniais queriam salvar e civilizar, para o continente que os marxistas queriam libertar. Agora estamos na fase do continente que as ONG’s querem ajudar. Esse ajudar África traduz-se numa defesa do envio incessante de alimentos e medicamentos e num apagamento e desresponsabilização da figura dos seus dirigentes. A este título foram interessantes as declarações de Obikwelu ao 'Expresso' sobre a ajuda humanitária a África: «A Europa não precisa de mandar dinheiro para África. Há países ricos, o problema é que os presidentes desses países são mafiosos e roubam a riqueza do país.»
Na verdade se não tivéssemos uma relação colonial com África já teríamos ousado dizer que Obikwelu tem razão e que Luanda não precisa de prender portugueses para negociar o reconhecimento internacional das suas cartas de condução. Basta-lhe assinar a Convenção de Viena sobre Tráfego Rodoviário.

PÚBLICO, 19 de Março