7.3.07

Quirinal ou Vaticano?


A investigação da história económica em Portugal tem feito grandes progressos nas últimas décadas e é hoje possível reconstituir com razoável grau de aproximação os principais indicadores económicos e sociais do país nos últimos três séculos. Ao analisá-los, eu não tenho dúvida em proclamar que o período do Estado Novo foi, a grande distância de todos os outros, o período de maior prosperidade de Portugal nos últimos trezentos anos.###
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A próxima questão, naturalmente, é a de saber qual foi o segredo íntimo do regime do Estado Novo e do seu principal criador - Salazar - que permitiu um tal progresso. A questão não é de resposta simples, porque a falta de distanciamento histórico tem contribuido mais para confundir os factos acerca da natureza do Estado Novo, do que para os elucidar. Assim, por exemplo, a ideia de que o regime era fascista é uma pura atoarda. (No final dos anos 30 existiam, de facto, movimentos fascistas em Portugal, especialmente entre a juventude, mas Salazar nunca se deixou seduzir por eles).
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É preciso dizer, em primeiro lugar, que Salazar foi o único estadista dos últimos séculos em Portugal que possuia uma doutrina política e social para o país, e que a fez cumprir. Por isso, ele podia dizer mais tarde que sabia o que queria e para onde ia. Esta doutrina partia do reconhecimento da história de Portugal e da caracterização do homem português: "Portugal nasceu à sombra da Igreja e a religião católica foi desde o começo o elemento formativo da alma da nação e o traço dominante do carácter do povo português", escreveu ele.
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Na realidade, eu estou hoje convencido que o segredo de Salazar foi o de ter organizado o Estado e feito viver a sociedade portuguesa à imagem e à semelhança da Igreja Católica - e onde ele era obviamente o papa. O Estado era servido, em geral, por pessoas de elevada craveira e com elevado sentido de Estado - uma espécie de bispos. As corporações e os sindicatos tinham parecenças com as ordens religiosas da Igreja. Este era um regime de liberdade ordenada semelhante ao da Igreja, onde tudo era permitido excepto destruir o regime. Com o tempo, Salazar foi abandonando as funções executivas, que ele delegava nos ministros como o Papa delega nos cardeais. A sua função principal era a de guardião supremo do regime - a sua autoridade para dizer Não.
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Em 1938 Marcello Caetano foi a Itália explicar ao governo fascista italiano que então ocupava o Quirinal a natureza do novo regime político português, e, em seguida foi ao Vaticano fazer o mesmo. Eis as reacções, descritas pelo próprio Marcello Caetano, em carta enviada a Salazar em 8 de Abril desse ano: "Aqui em Roma sente-se muito a separação das duas cidades, muito distintas na mentalidade, nas preferências e nos gostos: a do Quirinal e a do Vaticano. Nós, Portugal de Salazar, somos nitidamente, para o Quirinal, 'do lado de lá': o Mundo oficial do fascismo olha-nos como parentes pobres, enquanto o do Vaticano nos trata como filhos dilectos".
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E referindo-se às conferências que pronunciou na Universidade Régia e na Universidade Gregoriana: "À frieza da Universidade oficial correspondeu na Gregoriana um calor, uma ternura, um entusiasmo comoventes (...). Ao falar na doutrina político-social de Salazar, na Régia Universitá, perante altas hierarquias fascistas, a exposição foi acolhida com as reservas de uma heterodoxia, enquanto na Aula Magna da Gregoriana (...) os aplausos demonstraram bem o grau de aceitação e de adesão do público" (M. Caetano, Minhas Memórias de Salazar, Lisboa: Verbo, 1977, pp. 71-2).