7.3.07

A reforma do Estado


A reforma da administração pública é e prioridade número um da vida colectiva portuguesa. Dela depende a possibilidade de reduzir o défice, cumprir as regras comunitárias, e abrir espaço no orçamento para que o país possa amortecer a recessão que o incomoda há quase seis anos.###
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Num país anglo-saxónico e de tradição protestante, há muito que este seria o tema central dos debates públicos nos jornais, na rádio, na TV, até na blogosfera, nas universidades, cada cidadão procurando chegar a um consenso com os outros acerca das prioridades da reforma, indicando soluções para a materializar, acompanhando as suas realizações, contribuindo para corrigir os seus efeitos nefastos ou não-pretendidos, encorajando-a e aplaudindo-a nos seus sucessos.
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Em Portugal, porém, o assunto não merece debate. Ocasionalmente, aparece uma notícia sobre o tema, mas nunca é suficiente para acender a discussão. Na realidade, eu estou convencido que os portugueses discutiriam mais prontamente uma reforma da administração pública anunciada por Hugo Chavez na Venezuela ou Fidel Castro em Cuba, do que aquela que se pretende fazer no seu próprio país.
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Existe uma razão cultural poderosa para explicar este comportamento. Enquanto na tradição protestante existe uma relação directa entre Deus e o homem, na tradição católica esta relação é intermediada pela Igreja. Na tradição protestante cada homem sente-se com autoridade para contribuir para a definição dos destinos colectivos da sociedade. Pelo contrário, na tradição católica isso é matéria para as autoridades, não para ele, porque na tradição católica a autoridade vem de cima - não está no cidadão, como na tradição protestante.
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O resultado é que, sempre que viveram em regime democrático, os portugueses nunca conseguiram reformar as suas instituições. Os cidadãos elegem os governantes, mas à imagem de si próprios, não lhes reconhecem autoridade para definir e alterar os destinos da vida colectiva. Por isso, as duas últimas reformas do Estado em Portugal foram feitas por regimes autoritários onde a autoridade vinha de cima e era incontestada. Refiro-me ao Marquês de Pombal e a Salazar. Na realidade, também nunca se viu uma reforma da Igreja Católica feita pelos crentes; elas são feitas pelas autoridades, por concílios reunidos sob a autoridade suprema do Papa.
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Nestes casos, os portugueses aceitam as reformas e ajustam-se a elas com uma rapidez impressionante e, com o tempo, passam a admirá-las de uma forma que, às vezes, quase desafia a imaginação. Por isso, o Marquês de Pombal tem o seu nome em tantas praças de cidades, vilas e aldeias do país. Estou certo que chegará o dia em que Salazar rivalizará com ele nesta matéria.
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Em democracia, porém, as reformas nunca se fazem. Excepto aquelas que emanam de uma autoridade exterior, como aconteceu com as reformas de natureza predominantemente económica (privatizações, abertura de mercados à concorrência) dos finais da década de oitenta e princípios da década de 90. A União Europeia foi então a autoridade que os portugueses, olhando-a como estando num plano superior a si próprios, reconheceram como legítima.
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Esgotados os efeitos destas reformas, a economia deixou de crescer. É preciso agora fazer a reforma da administração pública. Aqui a União Europeia já não manda nada. E a reforma já não se faz.
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Na realidade, quando deixados à sua iniciativa espontânea aquilo que os portugueses tendem a fazer é a contra-reforma - o boicote da reforma - porque é nisso que eles são especialistas. Foram eles, juntamente com os espanhóis, que lideraram a reacção ao movimento da refoma protestante que, há séculos, começou a soprar do norte da Europa - e que ficou precisamente conhecido pelo nome de Contra-Reforma.