Quando há um ano surgiram várias notícias relatando que, por causa duma colónia de ratos de Cabrera, fora suspensa a construção da estrada entre Outeiro e Vimioso, na zona de Miranda do Douro, pareceu-me, mais uma vez, que a preservação da Natureza tinha as costas muito largas. Excessivamente largas, como escreveria Eça.
Há poucas semanas uma notícia do semanário “Expresso” confirmou esta minha intuição: o Rato da Cabrera não era visto nem achado no caso. O Rato de Cabrera existe na região e, diz quem o estuda, “não é um entrave à construção da rodovia”.
Pode perguntar-se então a que título se interpôs mediaticamente esta colónia de ratos entre a opinião pública e a estrada? ###
Simplesmente porque os autarcas da região e as Estradas de Portugal não se entendem acerca do traçado da dita estrada. E na hora de alterarem traçados e quase duplicarem o custo da obra saltou-lhes convenientemente para cima da mesa e avançou como bode expiatório o desgraçado do Rato de Cabrera.
Não sendo esta história invulgar em Portugal ela leva-me a seguir com alguma apreensão o debate em torno da localização do futuro aeroporto. Espero que desta vez o Ambiente não tenha as costas excessivamente largas. E que oportunamente não surja um qualquer clone do Rato de Cabrera a justificar a política do facto consumado.
Não é por coincidência que os casos de corrupção envolvendo autarcas vão invariavelmente desembocar nos concursos para tratamento de lixos e na desafectação de terrenos de áreas protegidas. Afinal tem sido em nome do Ambiente que a nível local se tomam algumas das decisões mais questionáveis e menos claras. Já no plano nacional o ambiente tem dado consistência a protestos que de outro modo não passariam de contestação política aos governos.
Note-se que durante a ditadura as obras eram contestadas por razões políticas. Recentemente Jorge Almeida Fernandes recordou o manifesto de 1959 em que “a oposição do Norte, de republicanos a filocomunistas pedia desenvolvimento mas denunciava o II Plano de Fomento” e rejeitava “as excentricidades como a da Ponte sobre o Tejo”. A mesma atitude existiu por parte da oposição perante o Alqueva, Sines ou Cahora Bassa. Eram obras do regime e isso era razão mais do que suficiente para as rejeitar. E assim se explica que, uma vez mudado o regime, algumas destas obras, como o Alqueva e Cahora Bassa, tenham encontrado os seus maiores defensores entre aqueles que mais violentamente as tinham contestado no passado.
Na democracia esta atitude deixou de ser sustentável. O que não quer dizer que as oposições não continuem a olhar para as obras públicas como uma manobra dos governos. Quanto a estes últimos continuam a considerar estas mesmas obras como o seu melhor argumento junto da opinião pública.
Se olharmos para trás vemos esta enfabulada dicotomia aquando da discussão em torno do traçado da Ponte Vasco da Gama, com um ministro, no caso Ferreira do Amaral, a entender a opção por esse traçado como uma questão pessoal, e um primeiro-ministro, Cavaco Silva, a reagir como se a contestação à localização da ponte fosse uma contestação ao seu governo. E vemos também como a oposição tendo percebido o potencial político da contestação às grandes obras não hesitou em lançar-se de cabeça na contestação à barragem de Foz Côa, afiançando milhões de turistas e garantindo que aquela energia não fazia falta alguma. Hoje sabemos onde nos levou tudo isto.
Por isso a discussão em torno da OTA é também tão importante.
Na verdade andamos a ficar um bocadinho cansados de fábulas.
*´PÚBLICO, 4 de Abril