18.6.07

Os limites da representatividade (republicação)

A propósito deste comentário da leitora Clara Martins feito em posta anterior do Gabriel:

É melhor pensarem muito bem antes de gastarem o dinheiro em estudos. Nunca é demais lembrar que a decisão compete EXCLUSIVAMENTE ao governo, que, para isso, foi eleito pelo povo. Portanto, com estudos ou sem estudos (a menos que esses estudos sejam mesmo muito bons e convincentes, o que não estou a ver...), se o governo, com toda a sua legitimidade optar pela OTA, ninguém pode fazer nada, nem mesmo o PR. É assim que funciona a democracia representativa.
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Uma das falácias da democracia representativa é a de que os representantes têm carta branca para decidir sobre todas e quaisquer questões que afectem a vida dos seus representados. Valida-se tal postura na base de um extensíssimo e detalhadíssimo programa eleitoral que se submeteu a sufrágio, mas pretende-se idêntica legitimidade para actuações que não constem do mesmo programa ou o contrariem totalmente. Este uso e abuso dos mandatos conferidos, vai desde a intervenção dita moralizadora tentando impor padrões comportamentais, até à delapidação mais selvática dos recursos em projectos faraónicos, passando por pretensões ridículas de moldar os gostos, como o atesta o caso da fixação de quotas mínimas de música portuguesa nas rádios. Dir-se-ia que um simples mandato eleitoral confere ao seu detentor súbita omnisciência e o direito inalienável de tudo decidir, trate-se do elementar ou do mais complexo.

Para mim são contestáveis estes poderes quase absolutos do Estado, bem como a suposta infalibilidade dos seus representantes, sendo que aqueles foram sendo usurpados de forma sub-reptícia à sociedade civil ao longo da história. É um facto que, nas democracias, eles foram sendo outorgados, de forma tácita, através de sucessivas eleições e do continuado logro dos almoços grátis em que se foi acomodando o eleitorado. Para Paulo Pedroso, tais poderes são incontestáveis e qualquer sugestão para dar voz à sociedade civil é vista como um ataque às regras básicas da democracia representativa, como aqui afirma em comentário à carta aberta aos deputados de que fui um dos subscritores.

Como socialista, Pedroso é um homem de fé e consequente na assumpção e tentativa de imposição de certos postulados que alguns ignorantes se recusam irritantemente a aceitar. Destacam-se nesses dogmas, a crença inabalável no Estado como locomotiva do desenvolvimento através do investimento dito estratégico. Neste se integram a ferrovia de alta velocidade e um aeroporto longe da cidade, a melhor forma de maximizar o nível de serviço e de conveniência aos seus utilizadores. Ignorar estas evidências, só denota falta de visão estratégica, não saber pensar grande, enfim, a nossa tradicional pequenez muito semelhante, aliás, à de alguns "pobres" países, igualmente vítimas da desventura de não possuírem TGV ou aeroportos gigantescos.

Terei muito gosto em discutir estes projectos com o Paulo Pedroso numa base mais técnica - a carta aberta pretende também suscitar esse debate. Mas, para já, prefiro colocar-me na posição da família do Zé, naquela postura de muito bom senso de confrontar os escassos recursos com as múltiplas necessidades, em simultâneo com a natural revolta por se ser obrigado a custear os benefícios de outrem, sem capacidade para tal.

É também esta a postura dos signatários da carta aberta e a ela não é lícito sobrepor os direitos de representatividade ou a prévia inclusão dos projectos em programa eleitoral. De resto, Paulo Pedroso está perfeitamente consciente que apenas uma infinitésima parte dos quase 2,6 milhões de eleitores do PS leu o seu programa eleitoral. Como sabe que pouquíssimos terão votado no PS com base nos ditos "investimentos estratégicos". Como sabe que as eleições decidem-se fundamentalmente pela atracção e/ou rejeição que os candidatos em disputa suscitam no eleitorado. Alguns sound-bytes repetidos na campanha, como a promessa dos 150.000 empregos, dos estágios subsidiados para jovens e, sobretudo, da recusa em subir os impostos, ajudaram por certo à maioria absoluta.

Mas a representatividade, mesmo que claramente outorgada, tem limites, seja qual for o nível a que nos situemos. Mesmo nas empresas, onde é normal haver discricionaridade nas decisões, os conselhos de administração nunca têm carta branca e, a partir de um certo volume, todos os investimentos, independentemente de se inserirem ou não na estratégia definida, têm de ser aprovados em assembleia geral de accionistas. Estes, muito raramente terão os conhecimentos técnicos que lhes permitam entender todos os sofisticados estudos de fundamentação elaborados pelos altos quadros e consultores que assessoram a administração. Sabem no entanto, melhor do que ninguém, medir o risco dos investimentos e aferir o custo de oportunidade dos seus capitais. Estão ainda convictos que, na lógica dos administradores, existem outros objectivos, quase sempre inconfessáveis e geralmente de cariz extra-económico que, por sistema, se sobrepõem ao retorno dos capitais. Vão desde estratégias de poder pessoal à mera vaidade ou ao muito lusitano espírito de ostentação novo-riquista. Só que o dinheiro não é deles...

Assim sendo, o que me garante que o "conselho de administração" do País - este ou outro qualquer - é constituído por "querubins" imaculados e reger-se-á por uma lógica totalmente oposta àquela? Mesmo que tivesse votado nele para o cargo, que razões me levariam a acreditar que toda a sua actuação fosse apenas em função dos meus interesses e conveniências que ele não conhece? E que poderes extraordinários terá que lhe permitam conjugar os meus interesses com outros antagónicos? E porque lhe hei-de conferir poderes ilimitados para gastar com toda a ligeireza 11.000 milhões que não lhe pertencem?

Por isso não me conformo e, na minha qualidade de "pequeno accionista" exijo ser ouvido.

P.S.: Posta publicada inicialmente em 11/01/06 como réplica a outra de Paulo Pedroso em que comentava, com argumentos muito semelhantes aos de Clara Martins, uma carta a todos os deputados (também subscrita por Rui Moreira), pedindo um referendo ao investimento na Ota e no TGV.