«O aperfeiçoamento da democracia não se reduz a reformas das instituições, mas implica um processo exigente de melhoria dos instrumentos de expressão e participação democráticas. Assim, o Governo defende uma modernização global do sistema político que valorize a intervenção dos cidadãos e das suas associações, através do alargamento do âmbito do referendo nacional e dos direitos de petição e de acção e iniciativa populares;» - Programa do XVII Governo ConstitucionalDeclarações como estas são recorrentes no discurso da nossa classe política. Serão frases sentidas ou simples sequências de palavras desprovidas de qualquer significado prático?
«a participação e o empenhamento dos portugueses, na vida pública, é essencial. O Estado e o Governo em democracia, 'não são eles', uma entidade distante e acima de todos nós.» Manifesto Eleitoral de Mário Soares
«O Poder aos Cidadãos», Slogan da candidatura de Manuel Alegre.
«...os cidadãos devem ser mobilizados para uma participação mais intensa e exigente na vida cívica, porque isso ajudará a elevar a qualidade do nosso sistema político.» em as Minhas Ambições para Portugal, manifesto de candidatura de Aníbal Cavaco Silva.
«Todos os processos de referendo assumem a maior importãncia em regime democrático, enquanto manifestação, por excelência, da participação dos cidadãos no exercício do poder político e de compatibilização desta participação com as instituições de democracia representativa.» - Jorge Sampaio, Presidente da República, 1998
Um grupo de cidadãos, não compreendendo os motivos que levaram às tomadas de decisão de gastar o absurdo montante de 11.000.000.000 - onze mil milhões de euros - em projectos megalómanos, mais os habituais 30%, 70%, 110% ou 150% de desvios, obras a mais e alterações de projectos, a que acrescem os projectos acessórios, muitos outros milhões para acessibilidades e mais o que se lembrarem os que vierem depois, não se deixando impressionar pela cacofonia ensaiada dos estudos de encomenda que, quando suportam a decisão previamente tomada são tornados públicos e quando demonstram o contrário são ignorados e escondidos, pede encarecidamente aos senhores deputados da nação, por eles eleitos, que ouçam a voz dos que os elegeram.
Estes cidadãos gostavam de sentir uma pequena brisa de cidadania, provar uma gota de participação cívica ou carreagar um grão de poder, opinando em liberdade sobre este gigantismo dos milhares de milhões, dos dez zeros que valem uma dúzia de pontes Vasco da Gama, muitas dezenas de Casas da Música e de CCBs, mais de uma centena de hospitais ou um milhão de carros utilitários.
Estes cidadãos gostavam de convocar um referendo em seu nome, dos seus filhos e dos filhos dos seus filhos a quem a factura também vai chegar. Estes cidadãos gostavam de participar livremente num verdadeiro debate público sobre estes investimentos multigeracionais, gostavam de sentir-se incluídos num relevante processo de escolha pública cujas consequências poderão ser bem diferentes das do prometido paraíso da riqueza explosiva.
Estes portugueses querem exercer a sua cidadania, sentir o poder dos cidadãos, ajudar o governo a aperfeiçoar a democracia, valorizar a intervenção cívica, participar intensamente na vida pública - afinal, querem apenas que os autores das citações que encabeçam este texto ponham em prática o sentido das suas proclamações públicas.
Estes eleitores e contribuintes, sabendo que a lei do referendo foi feita justamente para impossibilitar que grupos de cidadãos os convoquem, pedem encarecidamente aos senhores deputados da nação uma ajudinha. Façam-no, em nome de quem os elegeu.
Esta carta foi ontem enviada aos 230 deputados da nação.
- Senhor Presidente da Assembleia da República
- Carlos Abreu Amorim
- Carlos Brito
- João Baptista Magalhães
- João Cottim
- João Miranda
- Joaquim Vianez
- Luís Rocha
- Mário Frota
- Miguel Leão
- Paulo Morais
- Pires Veloso
- Rui Moreira
Senhores Deputados
Sois os representantes do Povo Português, de todos os portugueses. Alguns desses portugueses estão a escrever a cada um de vós esta carta aberta.
Senhor Deputado
Foi Vossa Excelência eleito por um círculo eleitoral distrital e, por ironia do destino, mal foi instalado, passou a representar todo o Povo Português. Ironia, porque logo a seguir passou a ficar subordinado a um grupo parlamentar partidário. O destino não quer que um deputado represente as pessoas específicas de um distrito mas permite que dependa de um grupo parlamentar, a quem deve disciplina partidária.
De qualquer forma, tem Vossa Excelência toda a legitimidade democrática para representar o Povo Português. Sabe, no entanto, que essa legitimidade não é absoluta, nem permanente, e que há matérias, assuntos, problemas ou situações que obrigam a ouvir o Povo directamente.
Em especial, quando há pluralidade de valores sociais e, portanto, há preocupações e critérios de justificação divergentes, quando há incertezas irredutíveis e quando há elevado risco nas decisões e na distribuição dos seus efeitos pelas pessoas concretas. As questões que então se colocam, é saber quem vai ser beneficiado e quem vai ser prejudicado, é saber como, quem vai ser prejudicado, pode exprimir as suas preocupações, é saber se os benefícios resultam para as gerações de hoje e os prejuízos para as gerações vindouras ou vice-versa.
Épreciso também saber que a ciência e a técnica não podem, por elas próprias, determinar as «boas» e as «más» escolhas. Há irreversibilidades que não podem ser reduzidas pelo avanço científico e tecnológico e, por vezes, este aumenta aquelas. Há riscos não quantificáveis, seja pela incerteza irremovível, seja pela complexidade científica. Há preocupações estratégicas, militares e ambientais para lá das económicas. Há diferentes pesos e diferentes significados atribuídos pela Sociedade Civil a este ou àquele risco. Há enorme influência de princípios e de crenças éticas e religiosas nas decisões. E há, sobretudo, pessoas que merecem mais do que simples dados de qualidade técnica assinalável a determinarem o processo de decisão, mas também qualidade de comunicação do próprio processo de decisão.
Senhor Deputado
Toda esta parafernália de considerações se encontra plasmada nas recentes decisões do Governo de construir um novo aeroporto na Ota e de proceder à instalação da «alta velocidade ferroviária» (vulgo TGV) nalguns pontos do nosso País. Decisões tomadas sem um mínimo aceitável de «contraditório» e com o aproveitamento do conhecido «quem cala, consente». Decisões alegadamente suportadas pelo «manto diáfano» de uma maioria absoluta, não eleita para o efeito. Decisões que, por falta de um debate alargado, não mobilizam o Povo Português, remetendo-o a espantar-se com as obras faraónicas e a alienar-se dos factos da responsabilidade «deles».
Senhor Deputado
Assuma integralmente, por uma vez que seja, a sua indesmentível qualidade de representante do Povo Português: exija que o Povo se possa exprimir directamente num referendo sobre estas decisões.
Porto, Janeiro de 2006
LISTA DE SIGNATÁRIOS