27.11.07

Infelizmente eles não estão doidos*

Numa escola pública de Lisboa, cada aluno tem por missão verificar o que come cada colega, sobretudo se petisca guloseimas. Seguidamente cada um destes vigilantes dá conta das suas averiguações ao professor de Formação Cívica. Presume-se que da posse dessas informações o dito professor tirará matéria para mostrar os benefícios da boa alimentação. As criancinhas soletrarão umas coisas sobre as vantagens de comer legumes enquanto se treinam como delatores. Desconheço se a avaliação incidirá sobre o zelo posto na delação ou na capacidade de abstinência de pastilhas elásticas. ###
Os meninos de hoje não devem ser menos prosélitos que os seus antepassados da Mocidade e dos Pioneiros. A alimentação deve preocupá-los tal como os contaminantes comunistas e fascistas ocuparam o imaginário higiénico dos seus avós e pais.
Se das escolas passarmos para o que está a acontecer aos pequenos cafés e restaurantes de bairro, incapazes de cumprir as sucessivas exigências das diversas autoridades que as licenciam e inspeccionam, deparamos com um universo que António Barreto descreveu e resumiu ontem sob o título "Eles estão doidos!" Mas ao contrário de António Barreto não acho que "eles" estejam doidos. Antes pelo contrário, acho que estão absolutamente lúcidos: esta espécie de possessão reguladoro-higiénica é um mecanismo eficaz para controlar e subjugar essa miríade de pessoas que, mal ou bem, em pequenas empresas, faziam a sua vida independentemente do Estado.

Sob os eufemismos da regulação, segurança, higiene e saúde impõem-lhes procedimentos impraticáveis e sobretudo mantêm-nos constantemente sob uma espécie de cutelo: de um momento para o outro um qualquer inspector pode embirrar com uma porta que falta, uma torneira que não é do modelo obrigatório ou porque os funcionários nãofrequentaram aquelas acções de formação cujos conteúdos por vezes tão bizarros só se explicam por conjugação dos astros - para quem for dado a essas crenças - ou porque existem estranhas conexões entre o mundo das empresas de formação e as pessoas que desempenham funções de inspecção.

Esta espécie de sufoco do pequeno empresariado é corroborada com o facto de a justiça fiscal ser em Portugal um privilégio. Um privilégio dos grandes grupos económicos, os tais que não só têm meios e técnicos para entender e contestar o fisco e as dezenas de regulamentos que pairam sobre todas as actividades, como também, na hora de investir, ainda gozam dum tratamento excepcional perante os caprichos e as demoras da burocracia: diante do balcão da administração pública os grandes grupos têm a via verde dos PIN. Os outros ficam retidos até que os portageiros-inspectores assim o entendam.

O sector alimentar, campo por excelência da livre iniciativa, é sem dúvida aquele em que actualmente é mais evidente esta utilização da máquina inspectiva do Estado para exercer um controlo sobre certos sectores da sociedade. As obsessões com a saúde ajudam a que se vá fechando os olhos aos factos, mesmo quando eles nos mostram a arrogância das inspecções perante velhos algarvios que fazem aguardente de medronho para consumo próprio, vendedores de bolos nas praias ou pessoas que vão à falência porque não podem esperar anos e anos para saber se vão ter ou não licença para abrir um restaurante.

Dentro de algum tempo será a vez de quererem regular as opiniões. Aí não falarão de segurança alimentar mas sim da pornografia, dos sites perigosos, dos blogues... E nesse dia, que não vem longe, na aulas de Formação Cívica cada aluno será responsável por ver e relatar o que faz cada colega quando se liga à internet.

*PÚBLICO 26 de NOVEMBRO