28.6.04

DIVAGAÇÕES SISTÉMICAS, E NÃO SÓ...

Vai por aí muita poeira com o novo folhetim.

É prestigiante termos um presidente da CE (raciocínio tipicamente "futebolês")? Durão traiu ou não? Santana irá a primeiro-ministro (vade retro!)? Ou será antes a Manuela (oxalá!)? Nenhum deles, eleições já?

Em suma, temos nova "feira" ainda antes de terminado o Euro 2004 e vamos andar enredados a discutir estes pequenos nadas, esquecendo o essencial. Há condicionantes de natureza sistémica que permitem este tipo de situações, em Portugal e não só. Divagando sobre isto:


Durão deve ou não aceitar a presidência da CE?

Numa perspectiva política e porventura moralista, diria que não. Mas, como escreveu o Rui, a política e a moral nunca se entenderam muito bem e, não nos esqueçamos, existem as pessoas e os seus interesses. Durão Barroso tem ambições e é legítimo que as tenha, como qualquer político que se preze. Não se lhe pode censurar que aspire a uma carreira internacional, facto tanto mais fácil de acontecer quando se está em posição de fazer o contraste entre cá e lá, entre as nossas capelinhas e campanários e as vetustas e grandiosas catedrais europeias. Oportunidades de carreira, todos gostamos de ter, seja numa actividade profissional, seja na política. Sabemos que as boas oportunidades surgem apenas uma vez e podem ter um custo elevado, qual seja o de deixarmos a meio algo que até gostamos de fazer e gostaríamos de ter acabado ou, numa perspectiva política, o de defraudar quem em nós confiou.

Barroso tem apenas uma desvantagem em aceitar o cargo - ser acusado de fugir à borrasca que se aproxima. Isto numa perspectiva política porque, se vier mesmo borrasca, é mais uma vantagem em termos pessoais. Mas uma tal acusação ser-lhe-á feita apenas pelas franjas do espectro partidário; o PS congratular-se-á em privado por ver pelas costas a principal figura da coligação e, em público virá, à semelhança do PSD, com o discurso "futebolês" da honra e prestígio para o País em deter tão relevante cargo. Em contrapartida, terá à sua disposição um dos jobs mais apetecidos da Europa, para o qual as provas de acesso nem são difíceis: não tem de passar por nenhum crivo eleitoral, apenas cair nas boas graças dos restantes confrades. Estes, à falta de um figurão consensual, acordaram numa figurinha simpática e supostamente manobrável. Ao que dizem, o homem até terá perfil para o cargo e, se virmos este apenas na vertente de negociação e de public relations, não lhe será difícil suplantar os cinzentões dos seus antecessores. Mesmo que a obra seja pequena ou insignificante, é sempre fácil fazer amplificar em Portugal alguns ecos elogiosos de Bruxelas. Foi assim que Vitorino foi posto nos píncaros pela nossa comunicação social, sem que ninguém, incluindo aquela, lhe conheça obra feita enquanto comissário.

Ou seja, numa óptica pessoal, Barroso tem muito mais a ganhar do que a perder em aceitar o cargo. O que está errado é o sistema, desprovido de mecanismos sancionatórios das más práticas. Em Portugal, em que o primeiro-ministro não responde directamente perante o eleitorado, mas perante o Parlamento e o PR, na Europa, em que cargos com a relevância da Comissão Europeia são preenchidos por nomeação. Barroso poderá, quando muito e em termos puramente legalistas, ser acusado de não cumprir o seu mandato de deputado para que foi eleito como cabeça de lista pelo círculo de Lisboa. Mas alguém se lembra que ele foi eleito ou sequer candidato a deputado?


Com Barroso a PCE, deve ou não haver legislativas antecipadas?

Não é obrigatório que tal aconteça. Aliás, o insuspeito Vital Moreira dá aqui uma (legalista) no cravo e outra (populista) na ferradura. Mantendo-se no Parlamento uma maioria de apoio a uma determinada solução governativa, é natural que, nos termos do regime vigente, daquela possa emergir um candidato à liderança de novo governo. Se esta nova figura deve ser validada por um Congresso específico do PSD, como defende JPP, ou apenas pelo respectivo Conselho Nacional, é perfeitamente irrelevante. Será sempre o resultado de equilíbrios estabelecidos no seio de aparelhos partidários, nunca de um sufrágio prévio pelo eleitorado. Mas é este o sistema que temos. Não é, nem nunca foi candidato a primeiro-ministro quem tivesse obtido a aprovação prévia dos eleitores em primárias, mas o eleito em congresso partidário por uma nomenklatura de cerca de 1.000 pessoas, a maioria (ou totalidade?) das quais depende umbilicalmente do Estado, seja na qualidade de funcionário ou gestor público, de autarca ou de estudante que não quer pagar propinas. Objectivamente portanto, nada obsta a que o PR indigite o "cromo" que lhe apresentarem.

Numa óptica institucional, é normal que o PSD proponha um dos seus vice-presidentes e aqui, goste-se ou não dele, Santana Lopes está na pole-position. A seguir viria Rui Rio mas este, se bem o conheço, é muito cioso do cumprimento dos mandatos e não lhe passará pela cabeça "trair" os seus eleitores - Santana, pelo seu lado, não deve sonhar com outra coisa há mais de uma semana. Diga-se que seria mais evidente nestes casos o virar de costas aos eleitores do que no caso de Durão Barroso, uma vez que os presidentes de Câmara são especificamente eleitos para os cargos. Um cenário de evolução na continuidade, passaria pela promoção de Manuela Ferreira Leite, porventura a única pessoa, para além de Rui Rio, com coragem suficiente para continuar uma política de rigor, mesmo conhecendo os seus custos eleitorais.

Incompreensivelmente, anda tudo em pânico com a perspectiva de Santana ser indigitado. Não tardará muito, porventura ele próprio virá declarar a sua indisponibilidade para o cargo depois de verificar, ao fim do enésimo telefonema e reunião, que um governo por si liderado é totalmente inviável porque... não dispõe, à partida, de um mínimo de credibilidade! Efectivamente, para além dos seus sempre fiéis Rui Gomes da Silva, Pedro Pinto, José Raul dos Santos, Marco António Costa e porventura uma colorida facção LiliCaneciana (na mouche, Sara!), mais ninguém aceitará integrar um gabinete por si liderado. Porventura em resposta ao desafio de JPP, Manuela Ferreira Leite já abriu as hostilidades e talvez se tenha intrometido também na linha da sucessão. Pela minha parte, desejo-lhe os maiores êxitos.

Resta dizer porém que, nos termos da CRP, nada obriga o PR a aceitar os nomes que lhe propuserem e hoje estamos todos confiantes no seu bom-senso. Por isso é prematuro todo este espalhafato que se tem feito e considerar-se já um dado adquirido o novo governo Santana/Portas. Mas, e fazendo o papel de advogado do diabo, o que nos garante à partida que o governo de Santana seria a catástrofe-mor do País? Seria impossível que ele se viesse a revelar, contra todas as expectativas, uma agradável surpresa? O que nos leva a considerar bom-senso uma recusa do nome de Santana por parte do PR? Dito de outra forma, faz sentido que uma tal decisão dependa do livre arbítrio de uma pessoa? Eis outra incongruência do nosso sistema!


É o sistema, mude-se o sistema!

Imaginemos que, em 13 de Junho passado, os resultados tinham sido exactamente o inverso e a coligação tinha alcançado cerca de 60%. Em vez de Telmo Correia, ouviríamos José Luís Arnault defender de forma mui burilada que a vitória se devia exclusivamente ao PSD e a Deus (Pinheiro). O PSD seria o primeiro a defender agora eleições antecipadas na esperança de uma maioria absoluta. Indo Durão para a Europa, chamar-se-ia Deus Pinheiro para o substituir, estando mais que legitimado para tal depois de tão rotunda vitória. Naturalmente que, quem hoje defende eleições antecipadas para ratificar o resultado das europeias, defendê-las-ia em circunstâncias inversas com o mesmo vigor. Vital Moreira escreveria uma posta com as mesmas conclusões desta e, na manif de ontem o Daniel gritaria, com todo o entusiasmo e convicção, palavras de ordem do género "Durão, adeus! O governo é de Deus!". Ou seja, o sistema é permeável a aproveitamentos políticos de todo o género. Imagine-se agora que numa eleição parcial para o Congresso americano se inverte a relação de forças e o partido apoiante do Presidente fica em minoria. Facto perfeitamente normal e que acontece de forma recorrente (a última vez durante o mandato de Clinton), sem que ninguém peça a demissão do Presidente. Este terá, no limite, de negociar de forma mais intensa e diplomática com o Congresso.

Durão foi eleito primeiro-ministro e fugiu a meio do mandato! Esta mensagem, quando muito uma meia-verdade, vai ser oportunistica e demagogicamente repetida até à saciedade pela rapaziada do Bloco, como se pode inferir num comentário do Daniel a esta posta do João. Mas confusão - deliberada - entre uma situação jurídica e uma situação de facto remete para outra fragilidade do sistema: a personalização indevida das eleições parlamentares nos potenciais primeiros-ministros, que se compreende, tendo em conta que o eleitor vota sobretudo motivado por uma relação de confiança ou afectividade com o líder de um determinado partido, muito mais do que com o próprio partido. O efeito disto é a completa menorização do Parlamento, o desconhecimento quase total dos restantes candidatos, muitos dos quais são-no para, após a eleição, suspenderem ou renunciarem ao mandato, saltando para o governo ou retornando ao conforto de um Conselho de Administração de um qualquer organismo público ou privado. Não deve haver tamanho desrespeito pelos mandatos como o que acontece quotidianamente na AR. Já agora, Daniel, o Bloco elegeu 3 deputados. Quantos é que já passaram no Parlamento, por via da vossa política de "rotações"?

Em síntese, a personalização da política é uma realidade irreversível e que não adianta ignorar. Porque não assumi-la então para todos os cargos electivos? Implica uma reforma profunda, uma alteração radical de todo o sistema político. Em tempos, já reflecti sobre isto, sem inventar nada de novo. Quem tiver pachorra e algum interesse neste tema, que (re)leia esta posta. E não deixem de reflectir na impressionante estabilidade do sistema americano que o João sintetizou.