23.2.05

O grande derrotado destas eleições: Jorge Sampaio

Em Julho de 2004, e perante a ida de Durão Barroso para Bruxelas, Jorge Sampaio viu-se, pela primeira vez, confrontado com a necessidade de optar entre a designação de um novo primeiro-ministro e a dissolução da Assembleia da República, acompanhada da convocação de eleições gerais antecipadas.

Optou o PR por convidar PSL a formar governo. À data, Jorge Sampaio justificou a sua decisão enfatizando, e cita-se, "a importância da estabilidade política enquanto factor de desenvolvimento nacional e de regular funcionamento das instituições democráticas". Para o PR, tal estabilidade política significava, "em primeiro lugar, que os cidadãos, quando são chamados a eleger os seus representantes na AR, têm, por essa via, a possibilidade de escolher, indirectamente, um Governo para os quatro anos seguintes; em segundo lugar, que, ao longo desses quatro anos, o Governo, com respeito das regras constitucionais, deve ter a possibilidade de realizar, livre e responsavelmente, o programa sufragado nas eleições; e, finalmente, que, no termo da legislatura, os eleitores julgarão a actividade do Governo".

Mais reafirmou o PR ser importante salvaguardar a continuidade de um conjunto de políticas consideradas essenciais: a Europa, a política externa, a defesa, a justiça, bem como as políticas de consolidação orçamental.

A decisão presidencial não foi pacífica, tendo causado as reacções mais diversas, de apoio a repúdio, atingindo um grau de dramatização tal - cuja expressão mais visível foi corporizada pela Dr.ª Ana Gomes - que indiciava um ambiente político na segunda metade da governação bastante crispado.

Os primeiros meses do novo elenco governativo confirmaram esse receio, tendo sido dissecados de uma forma pouco comum pelas oposições, media e sociedade civil, não concedendo a PSL o "período de graça" de que gozam habitualmente os que se estreiam no poder. A generalidade dos agentes que não se conformaram com a decisão presidencial iniciaram imediatamente um processo de corrosão politica, de efeitos surpreendentemente imediatos.

Para o desgaste acelerado da imagem do executivo contribuíram, também, alguns dos seus responsáveis, a começar pelo primeiro-ministro, que se deixou entrelaçar por uma teia crescente de inabilidades políticas - como a gestão da constituição do novo executivo onde, a par de excelentes elementos, foram integrados, em lugares-chave, pessoas próximas de PSL, com pouca experiência política; o adiamento do apoio do PSD a Cavaco, acompanhado de um afastamento de lugares relevantes na governação dos seus apoiantes - e fait divers - apelidados pomposamente de "factos políticos" - de pouco interesse para os assuntos vitais do Estado, mas que dificultaram ainda mais a avaliação feita pelos portugueses da actual governação - como "os casos Marcelo", o afastamento de Manuela Ferreira Leite do Congresso, a famosa "sesta", as pretensas presenças em casamentos e eventos sociais, o caso "Mira Amaral", numa lista infindável que deixou estupefacto o mundo mediático.

No plano da governação, porém, o executivo funcionava com normalidade, dando até a sensação que existiria uma dinâmica superior ao governo que o precedeu. Num curto período, o governo apresentou um conjunto de iniciativas que obedeciam ao programa delineado e que estaria a ser "tutelado" por Jorge Sampaio, em área sensíveis como a habitação (com a famosa "Lei das Rendas"), a justiça, os transportes e as finanças públicas.

É, portanto, num contexto virtual de instabilidade política que o Presidente da República opta - um pouco surpreendentemente, até - por dissolver a Assembleia da República, após um período incompreensível de suspense - dado o hiato entre o anúncio da dissolução, antes de ouvido o Conselho de Estado, e sem transmitir previamente a sua intenção ao Presidente da Assembleia da República, e a comunicação ao país.

Em Dezembro, JS tinha, por um lado, um Governo em exercício a funcionar com normalidade; por outro lado, porém, este Governo encontrava-se politicamente fragilizado, e cada vez mais isolado. O processo de degradação havia subido de tom sobretudo após a escolha de JS para liderar o Partido Socialista, o que permitiu ao Presidente da República passar a dispor de uma verdadeira alternativa que Ferro Rodrigues, em Julho, não representava.

JS será sempre um derrotado; a sua decisão marca de uma forma irreversível o seu mandato. Não caio na tentação de considerar que JS fez um "frete" ao PS; mas não posso, racionalmente, e em consciência, deixar de alertar para a carga negativa que a sua decisão acarretou, e que não fica sanada com o presente resultado eleitoral, pela seguinte ordem de razões:
a) Porque ela é incoerente, face à decisão tomada em Julho de 2004; na verdade, todos os argumentos utilizados por Jorge Sampaio nessa data mantinham-se intactos em Dezembro;
b) Porque ela revela uma valoração superior do património mediático face a um juízo efectivo da governação por parte do PR, criando um precedente na nossa prática constitucional gerador de instabilidade; no futuro, corremos o risco dos governos se preocuparem mais em governar para o reforço do seu património mediático, do que para cumprirem os seus programas eleitorais;
c) Na verdade, ela representa um precedente grave, introduzindo um elemento de instabilidade no nosso sistema político, sendo, a partir de hoje, incerta a governação, mesmo com apoio parlamentar; até à data, para governar, bastava ter maioria no Parlamento; agora, adicionalmente, é necessário obter o "beneplácito" presidencial; significa, também, que os governos passarão a sentir que não é essencial governar num horizonte de quatro anos, pois podem ser julgados liminarmente no período intermédio;
d) Porque reforça desnecessariamente a vertente "presidencialista" do nosso sistema de governo, apelando a que, nas próximas eleições presidenciais, o valor da estabilidade seja corporizado de uma forma ainda mais vincada pela máxima, para mim indesejável, "Um Governo, Uma Maioria, Um Presidente".