8.3.07

Aventino

Caro Pedro Arroja,###

A sua «proclamação» de que o período de ditadura conhecido como «Estado Novo» foi o «período de maior prosperidade dos últimos trezentos anos», ainda que se possa apoiar em alguma factualidade contabilista, nada indica, quanto á responsabilidade ou do mérito do regime para esse resultado.

Pelo contrário, os estudos, alguns dos quais anteriormente citou, indiciam que o regime, em termos de política económica e acção pouco terá contribuído para tal resultado, ou que o mesmo terá ocorrido, apesar do regime.
Vejamos. Durante 34 anos (2/3 da duração da ditadura), o pib per capita dos portugueses situou-se sempre por volta dos 40% da média europeia. Apenas no início da década de 60 terá subido de forma acentuada até, em 74, se situar na casa dos 60%. Simultaneamente, durante o mesmo período, a grande maioria da população situava-se no sector agrícola, sendo que este sector económico, até esse momento se manteve responsável pela maioria do pib nacional. O que sucedeu então no início dos anos 60, para que o modelo e estrutura do rendimento, produção e ocupação da população portuguesa tenha sofrido uma alteração tão acentuada? Terá existido alguma acção do Estado que provocasse essa alteração estrutural, sendo portanto directa ou indirectamente responsável pela mesma?

Nada isso. Devido precisamente á estrutura esmagadoramente agrícola da economia, e a tradicional dependência das exportações de alguns mercados europeus, nomeadamente do britânico, levou a que aquando da formação da EFTA (1958), Portugal tenha tido fazer parte da mesma, sob pena de ficar excluído das suas tradicionais fontes de exportação/rendimento. Este factor foi relevante, suportado por uma substancial baixa das tarifas aduaneiras, que incluíam também os produtos industriais, proporcionando um incremento significativo da produção e exportação do sector industrial.

Acresce a tal factor um outro igualmente relevante. Entre as décadas de 50 e finais de 60, 2,5 milhões de portugueses «votaram com o pés» e saíram do país, certamente insatisfeitos, entre outras coisas, com a suposta «prosperidade» que não lhes chegava a casa. Essa massa humana passou a ser responsável, em poucos anos, por um incremento do pib português na casa dos dois dígitos, mercê das remessas financeiras. E evidentemente, atendendo ás suas origens rurais e agrícolas, provocando uma substancial alteração no perfil socio-económico do país, com redução do peso populacional no sector agrícola e substancial aumento percentual da empregabilidade no sector industrial e de serviços. Desta forma cosmética, até poderá parecer progresso.....

Ou seja, terá sido pelos factores conjugados pela abertura da economia, motivada por factores externos, pela fuga das pessoas e pelas remessas externas que se terá dado uma alteração substancial do perfil social/económico do país no último terço de vida da ditadura, sendo que com a acção do «homem do leme» e do regime nos 34 anos anteriores , manteve-se o perfil de um país agrícola, atrasado e empobrecido.

Reconheço a originalidade da sua opinião quanto ao facto de OS ser um «estadista» que teria «uma doutrina política e social para o país». Até recentemente, e sem grandes divergências na doutrina histórica, julgava-se que o ditador tinha exactamente a característica contrária. Era-lhe desconhecida qualquer espécie (própria ou adquirida) de doutrina política. A sua forma de governar teria sido tão só ditada por um pragmatismo de cariz conservador, eivada aqui e ali por uns toques e tiques frutos da época, mas que se consubstanciavam no desejo de manter o país «ordeiro», deitando-se mão para tal do necessário aparelho repressivo.

Ao facto de lhe parecer que os servidores do Estado eram pessoas de «elevada craveira e com elevado sentido de Estado», há que chamar a atenção para que tal imagem é uma visão comum em toda e qualquer ditadura. Nestas, não havendo escrutínio, nem liberdade, a verdade oficial apenas dá quadros com cores agradáveis, e descarta, como grotesco, aqueles a que ela se opõem ou dela se desviam. Isso não tem segredo nenhum. A virtude por encomenda ou planificada é o bê-a-bá da tirania. Mal seria, ou antes, muita fraca seria a ditadura que nem conseguisse controlar a sua própria imagem, tendo ao seu dispor todos os mecanismos de controle e poder.

Permito-me no entanto corrigir essa ideia peregrina de que as corporações e os sindicatos da ditadura se poderiam analogamente comparar com o papel desempenhado pelas ordens religiosas no interior da Igreja. Nada de mais distante. Corporações e sindicatos deviam a sua origem e vivência unicamente ao regime, e dele eram câmaras de eco. Enfeites simpáticos onde se colocavam ou recrutavam os servis e cinzentos administradores e quadros de segunda e terceira linha. A missão de tais instituições, sob forte controle centralizado tinha como objectivo essencial tentar doutrinar, controlar e enquadrar aqueles a quem se dirigiam, ao invés de deles emanarem.
Pelo contrário, na Igreja, as ordens religiosas, , sobretudo as mais relevantes, tem surgido ao longo dos tempos como resposta a necessidades, movimentos e mudanças mais ou menos estruturais que ocasionalmente ocorrem na sociedade. Sempre e sempre, sem intervenção central. Surgem vindas da periferia, de movimentos e correntes com fortes ligações «exteriores», integrando e adaptando correntes contemporâneas. São (e faço agora eu uma analogia), uma das expressões daquilo que se poderá chamar a «sociedade civil» no interior daquela instituição. E nem vale a pena aqui recordar os inúmeros conflitos que tais ordens, cientes da sua autonomia, originaram ou sofreram com a hierarquia central.

Assaz curiosa é também a noção de que «Este era um regime de liberdade ordenada semelhante ao da Igreja, onde tudo era permitido excepto destruir o regime.».
Deixando de momento de lado a pertinência e veracidade de tal asserção face á igreja, permito-me no entanto realçar, que tal conceito de «liberdade ordenada» é em tudo similar a outro bastante mais conhecido: o do «centralismo democrático». Ambos tem a curiosa característica de os seus fundamentos e práticas negarem de forma absoluta uma das duas palavras do chavão: no primeiro, a vítima é a liberdade, no segundo, a democracia.

Mas fiquemos, (salvo seja), pela «liberdade ordenada». Que liberdade tal sistema permitia? A de expressão? Não. A de pensamento? Não. De publicação, de imprensa? Não. A política, de associação, de reunião? Também não. A económica? Nem essa. Ao fim e ao cabo, o conceito, restringir-se-á tão só ao termo «ordenada». Aí sim, estaremos de acordo que se pretendia que tudo fosse «ordenado». Por quem queria e por quem podia. Sobre tudo e sobre todos. E o que saísse da «ordenação ordenada», evidentemente, punha em causa e visava «destruir o regime». Um clássico dos sistemas ditatoriais, onde sempre se invoca pretender salvaguardar o que é definido por um ou por poucos como algo «essencial» para impedir toda e qualquer divergência.

Não.