A propósito da recusa da Madeira em aplicar a lei do aborto tornou-se popular a ideia de que a lei é para cumprir. Ora, este súbito legalismo é uma novidade na política portuguesa e, de qualquer das formas, não tem qualquer fundamento. Sempre vivemos com leis que ninguém cumpre, sendo a antiga lei do aborto o exemplo mais evidente. E na altura não me lembro de aqueles que agora dizem que a lei é para cumprir dizerem que as mulheres deviam ir para a prisão por abortar. A propósito vale a pena ler Agora a autoridade do Estado já dá jeito, não é?.
A ideia de que a lei é para cumprir não tem qualquer fundamento por três razões principais:
###
1. Num estado de direito existe uma incerteza permanente sobre o que é legal. Só os tribunais podem decidir o que é legal a cada momento. É por isso legítimo que quem discorda de uma interpretação legal não cumpra uma suposta lei até que um tribunal esclareça todas dúvidas. Ninguém é obrigado a uma interpretação da lei que vai contra os seus interesses.
2. A recusa a cumprir uma lei é legítima sempre que essa lei violar direitos constitucionais e/ou direitos humanos básicos.
3. Quando a lei está em conflito com a consciência de uma pessoa essa pessoa deve seguir a sua consciência e não o que diz a lei.
Em relação ao ponto 1 não faltam exemplos em que o Estado português se recusa a cumprir a lei por se encontrar em conflito com a Comissão Europeia. Nunca vi os legalistas dizer que nestes casos a lei europeia é para cumprir, o que mostra que no caso da Madeira predominam os sentimentos colonialistas (é preciso meter o Jardim na ordem). Em relação ao ponto 3, não faltam exemplos de criminosos de guerra nazis que alegaram estar a cumprir ordens. Suponho que os legalistas acharão que estes nazis foram exemplos notáveis de cumprimento do dever.