16.6.04
O DOUTOR FREUD E A DIREITA PORTUGUESA
1. QUANDO O DESEJO SE ESVAÍ
Passados alguns dias sobre as eleições europeias, parece já não subsistirem dúvidas quanto ao fim inevitável da coligação dos partidos do governo, se não for antes, pelo menos no fim da legislatura. Se interpretarmos o mutismo a que o CDS-PP se remeteu desde a noite de domingo como um sinal de absoluta desorientação táctica, sobre o futuro da aliança restam as declarações dos responsáveis do PSD. Aqui, mesmo por parte daqueles que poderiam, por razões de interesse pessoal, desejar que ela continuasse para além de 2006, as posições foram cautelosas, como bem se pode ouvir pela boca de Pedro Santana Lopes. Parece, por conseguinte, que este casamento de conveniência que teve sempre, pela parte do noivo social-democrata, tantas resistências e dúvidas, sobretudo quanto à pureza e às intenções virginais da noiva cristã e democrata, tem a sentença de divórcio marcada. Até lá, como é habitual nos casais nestas circunstâncias, assistiremos a um longo período de arrefecimento de relações, em que as recriminações serão múltiplas e de parte a parte. Mas, quando o amor se vai ou nunca chegou verdadeiramente a nascer, e o desejo é substituído pela obrigação, só resta o caminho da separação.
Isto deixa um problema de ordem prática à direita do sistema político português: o que vai ela fazer para evitar regressar à oposição em 2006?
2. O RETORNO A UMA RELAÇÃO SEGURA
O PSD, ideologicamente no centro-esquerda, tenderá a reforçar a sua componente social-democrata, em detrimento de algum populismo neoliberal que, de tempos a tempos, assola o discurso dos seus dirigentes, regressando à matriz que muitos dos seus dirigentes consideram a original e mais genuína do partido. O reencontro com o seu eleitorado de esquerda far-se-á com a substituição de alguns ministros menos despesistas e gastadores do erário público, como Manuela Ferreira Leite, por outros com maior «sensibilidade social». Com um progressivo distanciamento em relação ao CDS, que começará já nas eleições autárquicas e nos propósitos de candidatura de Cavaco Silva. O PSD compreendeu (aliás, sempre o soube) que as eleições, em Portugal, se ganham no centro-esquerda e, para voltar a conquistar o poder depois de uma tão prolongada crise económica, só nesse espaço o poderá conseguir.
3. O REGRESSO DO PAI
O CDS-PP tem um caminho difícil a percorrer e opções de fundo a tomar. Necessita de demonstrar que existe para além do acordo de governo e, sobretudo, que não se diluiu nesse pacto. Por um lado, regressará ao discurso ideológico da democracia-cristã, que é a sua reserva de caça eleitoral, onde afirmará as diferenças que o demarcam do parceiro de coligação. Dará ênfase às políticas sociais a que a sua matriz ideológica está ligada e, nesse sentido, realçará alguma obra feita, sobretudo pelo ministro Bagão Félix, ícone supremo do social-cristianismo popular português. A hipótese do partido enveredar por um discurso liberal está, assim, completamente posta de lado. Contudo, o trabalho de afirmação que o partido terá de fazer é outro, bem mais importante e difícil, e consiste em provar que mantém um quadro dirigente e uma implantação sociológica (ai as autárquicas!...) que ultrapassa o seu líder, e que não se esfumará no ar (ou, pior, em questiúnculas internas) pelo facto muito provável de deixar de ter, por enquanto, lugares no governo e na administração pública para distribuir. O regresso de algumas pessoas ultimamente distantes, nomeadamente de Luís Nobre Guedes, à ribalta do partido é condição sine qua non para a recuperação. Quem não entender que parte substancial do sucesso do CDS nos últimos anos se deveu a este dirigente, não percebe nada do que se passou na direita portuguesa nas duas últimas décadas. Se Guedes não voltar, e o CDS persistir no «assassinato ritual do pai», substituindo-o por alguns dos seus filhos mais azougados, dificilmente deixará de estar condenado no curto prazo.
3. OS TRAUMAS DO PASSADO
A Nova Democracia não tem muitas opções. Demonstrou que, numa eleição em que o voto de favor e simpatia impera, não consegue mais do que 35.000 votos. O caminho dos tempos mais próximos não será fácil: sem dinheiro, com algumas portas da comunicação social, até domingo abertas na expectativa dos danos que poderia causar ao CDS, a fecharem-se, e com inevitáveis questões internas a virem ao de cima, não será fácil passar o rubicão do desaparecimento. Não vale a pena repetir aqui as asneiras imensas cometidas, umas por falta de meios, outras por desorientação e algumas, as mais graves, por teimosia do seu líder. Mas é importante referir que a grande prova que a ND tem que prestar é a de saber se ela mais não é do que uma projecção da complexa personalidade política do Dr. Manuel Monteiro, ou se nela se encontram pessoas com valor pessoal (seguramente que sim) e político suficiente para imporem um estilo, uma estratégia, um objectivo para o partido. É que, de facto, o que parecia inicialmente ser um interessante aggiornamento de profissionais liberais não inseridos nos partidos e na política tradicional, eventualmente portadores de uma visão liberal e neoconservadora do Estado, com um discurso orientado para os interesses da classe média baixa, situada numa faixa etária do pós-Universidade e os primeiros anos de vida profissional (muito difíceis em Portugal), rapidamente se esfumou. Em sua substituição surgiu um Dr. Monteiro no seu pior, com os recalcamentos do CDS e de Portas, e um discurso incoerente e desorientado, que hoje era contra a invasão do Iraque e amanhã já não sabia, que às vezes queria apoiar as políticas sociais e outras vezes o rigor orçamental, que falava para a classe média mas para os pobrezinhos também, e por aí em diante. Em suma, se os fundadores do PND quiserem continuar a ser uma caixa de ressonância das ideias (ou da falta delas) do Dr. Monteiro, o fim será o desenlace mais certo. Se o Dr. Monteiro tiver a humildade para perceber que sózinho não basta, e, sobretudo, se franquear as portas a quem lhe pode trazer um novo e bem definido discurso neoliberal, dirigido à jovem classe média insatisfeita com a prepotência e a incapacidade do Estado português, então, a sua sorte poderá mudar. No fim de contas, a opção é simples: ou o Dr. Monteiro se basta em ser um primus inter pares, ou mantém o registo de líder «carismático». É certo que, tal como com a selecção portuguesa de futebol, embora tenha de manter um rigor táctico absoluto e sem falhas, mesmo que pela sua parte faça tudo bem, dependerá mais dos outros do que de si mesmo. Muito mais das asneiras que o CDS-PP possa cometer, do que de resultados decorrentes da exibição dos seus talentos. Os tempos em que dependia de si próprio já lá vão e não voltam mais.