3.2.05

GABRIELA, CRAVO E CANELA



Alguns dias de merecido repouso, concederam-me o privilégio de rever dois ou três episódios dessa fantástica telenovela chamada «Gabriela, Cravo e Canela», realizada pela TVGlobo há mais de trinta anos, a partir de um romance homónimo do maior romancista de sempre da língua portuguesa, Jorge Amado.
Para além do prazer de assistir a um notável trabalho de actores a protagonizarem uma história extraordinária, o exercício foi saudavelmente revivalista e fez-me recordar algum do tempo que então se viveu em Portugal.

Curiosamente, a «Gabriela» encaixava como uma luva de pelica no figurino político nacional de então. Tal como no romance, onde o pano de fundo era dominado por uma luta entre um velho regime despótico e as forças que lhe opunham a ideia da liberdade, também em Portugal se anunciava ter findado a «longa noite fascista» e iniciado uma era de democracia e fraternidade. Os verdugos eram, no livro de Jorge Amado, os coronéis do cacau, que dominavam pelo temor da força uma população faminta, pobre e explorada, tal como, em Portugal, o fora o povo durante a «longa noite». O chefe dos coronéis, o velho astuto, mas cruel, Ramiro Bastos (genial interpretação de Paulo Gracindo), fazia lembrar as míticas descrições de Salazar, um «manhoso das Beiras», segundo alguns dos seus opositores. O Dr. Mundinho (o melhor papel de sempre de José Wilker) encarnava numa só alma os esteriótipos da rebeldia, da inteligência, da generosidade, em suma, da juventude, qualidades de que se arrogavam os revolucionários de Abril.
À medida que o fio da história e o tempo da novela se iam aproximando do seu termo, todos nos fomos apercebendo da inevitabilidade do fim do velho regime e da eclosão de um novo. Da queda de Ramiro Bastos e da consagração de Mundinho. Todos sabíamos que isso sucederia, ainda que desconhecessemos quando e como. Até que Ramiro Bastos morreu (como Salazar) e, desde aí, o fim passou a ser muito claro aos olhos de quase todos.

Lembro-me como se fosse hoje do último episódio da «Gabriela». A seguir ao noticiário das oito, na RTP. Deviam ser umas nove, nove horas e pouco da noite.
Nas ruas do Porto reinava um silêncio absoluto. Não se via ou sentia vivalma. Todos estávamos frente aos televisores para vermos o triunfo de Mundinho, da liberdade e das ideias novas sobre o mundo antigo que desabara com a morte do velho ditador.
O episódio foi brevíssimo. Não terá demorado mais de vinte minutos. E termina com um plano de superfície da rua principal da cidade, com Mundinho a entrar por uma das extremidades, passeando calmamente sobre a sua bengala de cerimónia. Nisto, na extremidade oposta, um vulto vestido de negro que se percebe ser uma mulher do povo, corre para ele e, chegando-lhe, precipita-se a seus pés, ajoelha, pede-lhe a mão para a beijar e receber a benção dos poderosos. Mundinho, sem hesitar, dá-lha.
A novela termina assim e, curiosamente, Portugal não se inquietou.