16.11.06

"O despotismo, portanto, ...


... parece-me ser particularmente de temer em tempos de democracia."
(Alexis de Tocqueville).

A pergunta é a mesma, o referendo é que é já o segundo. E se o "Não" ganhar - como já ganhou uma vez -, o mais provável é que outros referendos se sigam até que ganhe, finalmente, o "Sim".

O referendo ao aborto é, provavelmente, uma das mais insidiosas manifestações do despotismo da multidão sobre a individualidade humana que Portugal conheceu desde que vive em democracia. ###

A vitória do "Sim" - e ela acabará por ocorrer, nem que seja ao cabo de muitos referendos - desencadeará um processo de consequências em parte imprevisíveis em que a vida de um ser humano, qualquer ser humano, que é o seu bem mais precioso, passará a estar dependente das deliberações pretensamente racionais da multidão e dos seus representantes democráticos - os governantes, os juizes e os membros do parlamento.

Eu não estou, por isso, surpreendido, que os principais entusiastas do referendo e do "Sim" provenham daquelas correntes políticas que, desde sempre, ambicionaram controlar a vida humana . Eles utilizam os argumentos da liberdade da mulher e do direito dela a dispor do seu corpo para legitimarem a sua posição.

Mas não nos devemos deixar iludir. O referendo, e a resposta afirmativa a ele, passam para as mãos da multidão a definição exacta do momento a partir do qual existe vida humana e antes do qual não existe vida humana.

E se, inicialmente, a definição desse momento é, de algum modo, restritiva - dez semanas de gestação - não é senão de esperar que, com o decorrer do tempo, esse limite seja alargado, primeiro para doze semanas, depois para quinze, até chegar a nove meses.

E, tendo chegado aqui, não existe razão para parar, porque a questão seguinte, ainda ela eminentemente racional, será a de perguntar se certas vidas humanas (v.g., deficientes) valem a pena ser vividas. E a resposta, - também ela racional, embora relevando não da racionalidade do próprio, mas da racionalidade da multidão ou dos seus reprentantes democráticos - será, em muitos casos, não.

Quem delibera sobre o momento em que começa a vida humana acabará também a deliberar sobre o momento em que ela termina. E num mundo em que a tecnologia permite diferir a morte de forma nunca antes imaginada e alargar as fronteiras da vida, nós não podemos senão antever quem um dia vai deliberar sobre o dia em que a nossa acabou.