Portugal parece ter descoberto não só que a CGTP é controlada pelo PCP como ainda que esta central sindical se recusa a evoluir, entendendo-se neste caso por evolução uma conversão àquilo que o PS define como realismo. Mas não só. Ao que tudo indica e nos é revelado pelas vozes que falam pelo nosso governo, são também os comunistas quem se encontra por trás dos grupos ruidosos que esperam o primeiro-ministro e alguns membros do governo onde quer que eles se desloquem.
###Dizer que a CGTP é controlada pelo PCP e que boa parte das manifestações espontâneas nada têm de espontâneo é tão novo quanto dizer que os peixes vivem dentro de água. Presumo que português algum ignore que os sindicatos estão ligados a partidos e nem sempre esse partido é o PCP. Por exemplo, durante os governos Cavaco Silva o PS pressionou fortemente a UGT para que não assinasse acordos de concertação social sobretudo nos anos que precediam eleições legislativas. Que eu saiba, Torres Couto, líder da UGT nos anos 80 e que, como secretário-geral dessa central sindical recusou assinar, em Outubro de 1994, o mesmo Acordo Económico e Social de Médio Prazo para o Desenvolvimento e Emprego a que começara por dar o seu apoio, não desmentiu até agora a frase que Cavaco Silva lhe atribuiu nas suas memórias: "O PS linchava-me se eu desse esse trunfo ao Governo do PSD".
Também presumo que o facto de uma greve ser controlada pelo partido A, B ou C - e o A, B, ou C em Portugal são o PCP, PS e com muito menor capacidade o PSD ou o BE - não retira gravidade às situações vividas por muitas das pessoas que se vêem afectadas pelo desemprego, baixos salários, cortes em prestações sociais e serviços estatais que não só todos os partidos lhes garantiram ser uma conquista para a eternidade como lhes disseram ser eternamente susceptíveis de alargamento.
Os sindicatos, seus dirigentes e também grande parte da função pública vivem, neste início do século XXI, o drama que afectou os aristocratas nos séculos XVIII e XIX, drama esse que Hannah Arendt, recuperando algumas das conclusões de Tocqueville, descreve em "As origens do totalitarismo": "Enquanto os nobres dispunham de vastos poderes, eram não apenas tolerados mas respeitados. Ao perderem os seus privilégios, e entre eles o privilégio de explorar e oprimir, o povo descobriu que eles eram parasitas sem qualquer função real na condução do país. Por outras palavras, nem a opressão nem a exploração em si constituem a causa principal do ressentimento; mas a riqueza sem função palpável é muito intolerável, porque ninguém pode compreender - e consequentemente aceitar - por que deverá ser tolerada."
Os sindicatos estão a perder poder e, nesse plano de queda, não só se questiona cada vez mais a sua utilidade como se assiste a uma enfatização indignada naquilo que agora se define como vergonhoso privilégio mas que até há pouco era apresentado como um direito inquestionável desses mesmos sindicatos. Por exemplo, quantos anos foram necessários para que se falasse do número de funcionários públicos destacados em funções sindicais?
Com tudo isto convirá acrescentar que os partidos, mesmo quando não organizam estas manifestações e greves ou até quando têm uma posição diametralmente oposta à dos grevistas, acabam por tentar tirar proveito delas - vejam-se as declarações de Marques Mendes sobre a função pública e respectivas greves. Mas muito mais arriscado do que este oportunismo de circunstância é o jogo que o PS faz com os sindicatos, sobretudo com os tais sindicatos, manifestantes e movimentos que agora acusa de irresponsabilidade e pretende converter ao realismo.
Quando está na oposição o PS não só ignora olimpicamente toda a manipulação e laboriosa organização que está subjacente a muitas dessas manifestações espontâneas como se associa, beneficia e se articula com muitas delas. Infelizmente não o faz apenas com as mais folclóricas dessas manifestações ou com as mais justas. Fê-lo também com as mais perigosas para o funcionamento das instituições democráticas como aconteceu, em 1994, durante o bloqueio da ponte sobre o Tejo. Ou com as mais populistas como aconteceu durante a contestação à construção da barragem de Foz Côa. Ou apoiando reivindicações e atitudes das diversas polícias que sabe serem incompatíveis com o respeito pelas instituições. Ou participando nas manifestações do 1º de Maio ao lado secretário-geral da CGTP como fez Ferro Rodrigues...
O PS cresce provavelmente mais em ânimo do que em votos, mas de qualquer modo cresce, quando, na oposição, capta simpatias entre o chamado povo de esquerda. Esse povo que, com mais ou menos festa e muita leitura de poesia, voga entre o BE, a margem esquerda do PS, os católicos progressistas e alguns desiludidos do PCP. Quando chega ao governo, o PS afasta-os para o lado e declara-os irrealistas e manipuláveis. Em boa verdade são. Além disso muitos deles também são obedientes. Por exemplo, caso o PS não fosse governo, os ocupantes do Rivoli eram neste momento heróis nacionais. A seu lado, amarrando-se simbolica ou concretamente às portas do teatro, eles teriam visto militantes destacados do PS que não hesitariam em recordar grilhetas passadas. A própria ministra Pires de Lima, caso não fosse ministra, lá estaria denunciando a asfixia e o esvaziamento cultural do Porto. Assim ficou para a próxima.
Na oposição, o PSD espera que os governos apodreçam. O PS também conta com o efeito do desgaste mas revela uma maior capacidade do que o PSD para capitalizar em proveito próprio a rua, as manifestações, as greves... Por isso, melhor do que ninguém, o PS sabe que há que ter cuidado com a rua, com as tais iniciativas daqueles a que agora chama irresponsáveis e irrealistas. Como a oposição à direita anda à procura de si mesma, o PS não precisa muito de se preocupar com ela mas se e quando for necessário os socialistas recorrerão aos habituais fantasmas do progressismo versus reaccionários sem esquecer a selva neo liberal. Por agora o que é necessário é ir ridicularizando os companheiros de ontem. E se possível torná-los um pouco mais irrelevantes. Por exemplo onde anda Francisco Louçã? Por mim foi necessário ir à IKEA para encontrar o outrora mediaticamente indispensável líder do BE. Quanto a Jerónimo de Sousa e outros dirigentes do PCP, se a URSS ainda existisse quase seria levada a pensar que tinham ido visitar os países irmãos. De alguma forma têm de aprender a lidar com o realismo socialista na versão de José Sócrates.
*crónica PÚBLICO, 4 de Novembro