11.5.07

Era uma vez...*

Deve ser muito tranquilizante ver o mundo assim a preto e branco, como o vê Rui Tavares: dum lado a direita má e do outro a esquerda boa. Dum lado os inteligentes e do outro os estúpidos. Ou que não sendo completamente estúpidos votam estupidamente em candidatos que também eles são muito estúpidos embora tenham umas intermitências de perfídia, caso contrário nunca ganhariam eleições.
Esta enorme indulgência para consigo mesma que caracteriza alguma esquerda é continuadora daquilo que no passado se designou como superioridade moral dos comunistas. Hoje não se é comunista. É-se de esquerda ou activista mas continua viva entre os auto-designados sectores progressistas a convicção que se é intelectual e moralmente superior aos outros. Ou seja àqueles que pensam doutro modo e que eles encafuam na direita. ###
Este preconceito está tão arreigado que a melhor forma de conseguir fazer passar a mais despropositada ou iníqua medida é revesti-la duma capa progressista. Por exemplo, as teses do governo da Bolívia sobre a justiça e o ensino estão imbuídas do mais puro racismo. Mas como Morales faz parte do universo progressista não se conseguiu que, no século XXI, a Europa e os EUA condenassem o que está a acontecer na progressista Bolívia com a vivacidade que expressaram há quarenta anos a propósito do apartheid, então vigente na reaccionária África do Sul.
A auto-indulgência da esquerda em relação àqueles que toma como seus tem efeitos perversos sobretudo para a própria esquerda. Não por acaso a esquerda continua a ser tão pouco exigente para com os seus líderes: já alguém supôs, por exemplo, o que aconteceria se Marques Mendes tivesse um percurso académico semelhante ao de Sócrates? Por outro lado, a esquerda vive convencida que pode não ganhar eleições – o que não é a mesma coisa que aceitar perdê-las – mas que tal só lhe acontece porque os adversários são populistas, racistas ou qualquer outra malévola coisa acabada em “ista”. Jamais pela prosaica razão que os adversários tinham um programa que respondia melhor às preocupações do eleitorado.
É precisamente esta espécie de estado de eterna vitória moral que encontramos não apenas na reacção de alguns sectores de esquerda à vitória de Sarkozy mas também na sua dificuldade em condenar as acções dos grupos de extrema-esquerda após essa vitória. Como os autores dos tumultos revindicam uma pertença de esquerda o seu comportamento criminoso transforma-se em «manifestações anti-Sarkozy». O que tem implícito que a culpa dos carros queimados, dos vidros partidos e dos feridos é do próprio Sarkozy que não só teve a desfaçatez de se candidatar mas também de ganhar. E assim postas as coisas creio que podemos passar à «racaille» propriamente dita. Mas terá de ficar para depois que o texto já vai longo e o assunto é muito sério.


Ps – Sobre a feição proteccionista do programa económico de Sarkozy denunciada por Rui Tavares apenas posso registar, com agrado, que o meu colega de Pingue-Pongue se vai liberalizando mais depressa do que a direita e do que a esquerda francesas. O pendor proteccionista de Sarkozy é preocupante e acredito que, nesta matéria, teria valido a pena que Sarkozy tivesse enfrentado o socialista Dominique Strauss Khan e não Ségolène Royal.

*PÚBLICO, 10 de Maio