3.5.07

Não ver, não ouvir, não falar

Em Junho de 75, furioso com o ruído mediático gerado pela prisão de Arnaldo de Matos e doutros militantes do MRPP, Otelo Saraiva de Carvalho declarou: «o PAIGC fuzilou, imediatamente, e enterrou dezenas de contra-revolucionários que se opunham à Revolução. Mataram-nos e enterraram-nos. E não houve uma única linha a tratar deste problema.» Assim postas as coisas Otelo tinha razão: não se percebia tamanho alarido por causa da detenção dumas dezenas de jovens ruidosos quando «não houve uma única linha» a tratar do desarmamento e entrega ao PAIGC, pelo exército português, dos cidadãos nascidos na Guiné que tinham integrado as Forças Armadas Portuguesas. `###
O destino de muitos destes homens foi exactamente aquele que Otelo descreveu: “o PAIGC fuzilou, imediatamente, e enterrou dezenas de contra-revolucionários que se opunham à Revolução. Mataram-nos e enterraram-nos.”
Grotescamente a pouca discussão que, em Portugal, se estabeleceu anos mais tarde sobre o assunto resumia-se a indagar se os fuzilamentos teriam começado antes ou depois de Outubro de 1974. Porquê este mês e não outro? Porque é em Outubro de 74 que o exército português saiu oficialmente da Guiné. Logo se os fuzilamentos começaram antes dessa data ainda estavam em Bissau os oficiais que tinham comandado esses homens que agora eram executados como contra-revolucionários. Mas tivessem sido ou não as forças armadas portuguesas cúmplices nesses fuzilamentos e detenções, a verdade é que como Otelo dizia «não houve uma única linha a tratar deste problema». E não foi certamente por falta de informação: logo no final de 74, os jornalistas estrangeiros que se tinham deslocado à Guiné começaram a indagar sobre o destino dos comandos e soldados negros do exército português naquele território. Em Portugal ninguém lhes dedicou de facto uma linha ou melhor dizendo dedicou-lhes uma ou duas linhas O Século. No meio duma descrição sobre a forma como o PAIGC ia fazer da Guiné-Bissau um pólo cultural, O Século dizia que os antigos combatentes se tinham transformado em agricultores.
Ao que vêm agora estas memórias? Porque há coisas que nunca mudam. E uma delas é a nossa determinação em fazermos de conta que certas coisas ou pessoas nunca existiram. Em Abril de 2007, na cidade de Bissau, alguns milhares de guineenses, antigos soldados do exército português, denunciaram o beco sem saída para que foram atirados: em 1974, o Estado português não honrou com eles os compromissos que estabelecera ao incorporá-los. Em 2007, o mesmo Estado continua a tratá-los como cidadãos de segunda não lhes reconhecendo o direito às pensões e mecanismos assistenciais que reserva aos seus antigos militares.
E em 2007, tal como em 1974, quase «não houve uma única linha a tratar deste problema». A bem da nação estamos sempre disponíveis para não ver e não perguntar

*PÚBLICO, 2 de Maio