16.10.07

Um poder que dá sempre jeito*

Multas e manifestações são os assuntos que os trazem habitualmente às páginas dos jornais. Depois desaparecem. Até à próxima revoada noticiosa. Refiro-me aos governadores civis. Nesta década, o PSD e o PS não só anunciaram a sua extinção como ela chegou até a ser agendada. E ambos os partidos desistiram pela simples razão de que os boys não deixaram. À conta deste impasse as competências dos governos civis, que oficialmente – e registe-se o oficialmente – foram sempre ridículas, ficaram ainda um pouco mais ridículas. Por junto as atribuições dos governos civis reduzem-se a licenciar alarmes sonoros, os sorteios, tômbolas e rifas, emitir passaportes, autorizar reuniões, comícios e cortejos e exercer as funções legalmente estabelecidas no âmbito dos processos eleitorais. A este labor juntaram este mês a tarefa de receber as cartas de condução dos cidadãos que estão inibidos de conduzir. ###
Não sei bem como é que alguém se pode reivindicar governador do que quer que seja com esta lista de atribuições, lista essa, que mesmo nos tempos áureos dos governos civis, também não ia além do licenciamento de acampamentos, armeiros, arrumadores, bailes e arraiais, fogueiras, guardas-nocturnos, leilões, ruído, provas desportivas, máquinas de diversão e venda de lotarias. Enfim nada que um simples balcão numa junta de freguesia ou numa loja do cidadão não resolvesse mas extinguir os governos civis implicava extinguir essa espécie de reserva de cargos e empregos para políticos de terceira linha, respectivos cônjuges e seus próximos. Mas seria injusto imputar as culpas pela sobrevivência desta relíquia político-administrativa a algumas centenas de influentes locais dos partidos. Afinal, se é indiscutível que todas as tarefas dos governos civis podiam ser transferidas com assinalável proveito para outros orgãos da administração, é também certo que os executivos não se têm querido privar do lado político e policial que os governos civis podem desempenhar. Lado esse que é óbvio quando se investiga o caciquismo e o autoritarismo em Portugal no século XX. Aliás as funções políticas que hoje se prevêem para os governadores civis são um misto de Secretariado da Propaganda e de Polícia de Informações: “Enquanto representante do Governo na área do distrito, compete ao governador civil exercer funções de representante do Governo, colaborar na divulgação das políticas sectoriais do Governo, designadamente através de acções de informação; prestar ao membro do Governo competente em razão da matéria informação periódica e sistematizada sobre assuntos de interesse para o distrito; prestar informação relativamente a requerimentos, exposições e petições que lhe sejam entregues para envio aos membros do Governo ou outros órgãos de decisão.”
Nem sequer nos anos 30 do século XX, antes da divulgação da rádio e do aparecimento da televisão, os governadores civis conseguiram divulgar as acções do governo. Muito menos agora se espera que o façam. Já o seu lado policial sempre foi desempenhado com maior eficácia.
Ironia final: estes dezoito delegados do governo, resguardados numa denominação tão pomposa quanto vaga, pouco ou nada escrutinados pelos orgãos que têm a seu cargo avaliar o desempenho das forças de segurança, longe de extintos vão presidir aos Gabinetes Coordenadores de Segurança Distritais, previstos na nova legislação sobre Segurança Interna.
Quem disse que os governadores civis eram coisa do passado?

*PÚBLICO, 15 de Outubro