Não vivessem os pedagogos da 5 de Outubro na firme convicção que os textos, à semelhança das casacos, se dividem em modernos e apelativos versus antigos e aborrecidos, e muitos mais portugueses conheceriam o romance de José Rodrigues Miguéis que dá título a esta crónica.
'Uma Aventura Inquietante' é um policial que tem a vantagem de explorar as nossas idiossincrasias nacionais. Duma delas, a que para esta crónica interessa, dá conta Miguéis logo no prefácio: «Não há português digno do nome que, passando por Paris, não vá abrir a boca de admiração a uma esquina da Rue de Lisbonne ou do Boulevard Pereyre; (...) Uma simples referência ao madére num romance de Dumas, ou ao porto numa novela russa (...) bastam para nos compensar de infindos amargos de boca patrióticos. Vaidades perdoáveis em quem, como Pedro-Sem, já teve e agora não tem.» ###
O Tratado de Lisboa é a pretérita tabuleta em Paris. O facto do Tratado se chamar de Lisboa dizem que deve encher-nos de orgulho. Não é suposto que o entendamos para lá da sua segunda página – Vital Moreira dixit – e à semelhança doutros documentos da nossa História recente, como a Constituição de 1933, talvez o plebiscitemos se os nossos governantes estiverem suficientemente tranquilos acerca do resultado. O papel que está reservado aos povos na UE pós Tratado de Lisboa é o das palmas gravadas nas séries televisivas: preencher o vazio.
Para todos líderes portugueses a CEE/UE funcionou e funciona como o meio de nos livrarem dos nossos fantasmas. Primeiro foi seguro político contra as tentações autoritárias e castrenses. Depois o algures donde nos viria a organização, as regras e as verbas que não só fariam de nós uma versão tranquila e higiénica do homem novo como nos obrigariam a fazer pelo menos amanhã o que devíamos fazer hoje. Para os respectivos dirigentes os povos da Europa são uma espécie de crianças a quem a UE, qual visita de cerimónia, obriga a um mínimo de polimento e ao protelamento das discussões desagradáveis. Digamos que o arranjo pode ter vantagens mas não se pode esquecer que o seu equilíbrio é precário. E com este tratado é difícil garanti-lo.
Os burocratas de Bruxelas concebem directivas unificadoras em nome das quais se imiscuem mais nas nossas vidas do que os governos nacionais. Querem determinar que publicidade vemos, o que comemos, a planta das nossas casas e o material das colheres de Lisboa a Tallin. Sob este esqueleto normativo os dirigentes políticos constroem uma espécie de cidadela. Ou de Castelo da Bela Adormecida caso queiramos recuperar o paradigma do tonitruante “Acordem” proferido por José Sócrates no Parlamente Europeu. Mas cabe perguntar quem está preso num sono encantado: os vários povos dos países que constituem a UE ou os seus dirigentes?
A fuga em frente representada pelo Tratado de Lisboa pode tornar-se numa aventura inquietante. Tal como no romance de Miguéis também na Europa nada é o que aparenta. A começar pelos europeus. Esses são uma ficção. Às vezes quase perfeita mas nem por isso menos ficção. Como o era também em uma 'Uma Aventura Inquietante' a família que chorava o cadáver descoberto no lago de Woluwe, situado agora e no romance de Miguéis numa Bélgica atormentada pelo nacionalismo e pelo racismo. Moral da história e da História: a boa Literatura não só nunca perde actualidade como também a antecipa.
*PÚBLICIO, 6 DE Novembro