A história da igreja católica é conhecida - os factos estão estudados, foram analisados e comentados por estudiosos das mais variadas orientações. Sabe-se das condenações oficiais do lucro, da anatemização do "juro" e da censura clerical dos mais rudimentares princípios da liberdade económica (e não só). De há muitos séculos a esta parte este foi o tom oficial.
Também se conhece bem a história da Inquisição e os efeitos tremendos que as perseguições e convivência centenária com a intolerância aportaram. A história da igreja católica, certamente, não se resume à Inquisição mas é impossível compreender uma sem a outra - e o caso português, neste particular, constitui um verdadeiro case study.
Evidentemente que existiram no seio da igreja opiniões que não se subsumiam na corrente oficial e principal - mas, as toleradas, eram pontuais, avulsas e nunca beliscaram o discurso tradicional. Quando, por desventura, o faziam os seus autores eram severamente punidos (como, aliás, esteve prestes para acontecer com Juan de Mariana, o objecto da análise do Rui que, também, aqui se comenta, que foi salvo in extremis).
Eram essas manifestações, de algum modo discrepantes, verdadeiramente importantes no seu tempo? Influenciaram decisivamente as opiniões coevas? Alteraram o modo de agir da igreja?
Não.
Essas visões oscilavam entre as excentricidades permitidas e as heresias castigadas. Mas umas e outras não afectavam a corrente dominante e essa permanecia intolerante e visceralmente contrária à Liberdade. Não fizeram escola nem deixaram qualquer lastro nas expressões oficiais da organização eclesiástica. E se a igreja acabou por mudar (um pouco) a sua visão das coisas tal foi constrangido por fenómenos políticos, culturais e históricos que impuseram os valores da modernidade ao arrepio da vontade declarada dos mentores dessa organização.
Mas, sobretudo para os liberais-papa-hóstias (lamentável conceito que conceptualmente diagnosticarei nos próximos tempos), a tentação é enorme quando se descobrem textos que, aqui e além, parecem emparelhar a evolução do pensamento católico com valores da nossa própria contemporaneidade.
De repente, a vertigem da fábula torna-se irresistível. Tudo é virado do avesso, o sentido histórico das coisas é confundido e os perseguidores são pintados como os mais ardorosos defensores das causas das suas vítimas:
- Luís de Molina falou em liberdade de comércio? Cá está, o catolicismo sempre pugnou pelo Mercado!
- Há um trecho da "Summa" em que alguns julgam enxergar a defesa da liberdade do indivíduo? Não restam dúvidas, o liberalismo clássico e individualista assenta directamente em S. Tomás!
- Descobriu-se um extracto da autoria de um clérigo medieval obscuro em que se faz a apologia da experimentação? Está claro que foi a igreja que esteve na base da evolução da Ciência desde Copérnico e Galileu até aos nossos dias!
- Juan de Mariana disse que o poder dos reis não poderia afectar a propriedade privada? Pronto, eis um libertarian (?) e a prova acabada que a igreja não era a inquisição e a defesa do direito divino dos reis absolutos...
Muitos liberais já caíram nessa atarantação histórica e conceptual. Trata-se de um misto de pio "wishful thinking" com uma aliciante, mas inapelavelmente pontual, aliança estratégica entre os defensores da Liberdade, do Indivíduo e do Mercado com os adoradores institucionalmente organizados da Cruz - embora, tantas vezes, a eventual generosidade da ideia seja fatalmente prejudicada por uma volitiva falsificação interpretativa dos factos.
(Pela exuberância das referências ao jesuíta espanhol seguindo de perto este tipo de regras intencionalmente redutoras e falaciosas, designo este fenómeno como "equívoco Molina")
O "equívoco Molina", em que o próprio Hayek terá resvalado, é uma derivação extrema do anacronismo e traduz-se no isolamento forçadíssimo de um facto histórico a que se atribui uma relevância desmesurada que este nunca conheceu no seu próprio tempo. A partir deste pressuposto erróneo retiram-se ilações puramente especulativas visando reinterpretar atitudes dominantes de uma determinada época à luz dos ensinamentos recolhidos exclusivamente a partir desse facto e através de métodos desviantes com o fito de suportar razões que apenas se enquadram na realidade e na época em que este artifício é feito.
O "equívoco Molina" é um critério que pretende alvorecer a imagem de certas instituições ou ideias, adaptando o seu percurso histórico às necessidades do tempo contemporâneo exagerando ou limitando os contextos históricos consoante as conveniências da circunstância.
O "equívoco Molina" transforma a excepção na regra oficial, tida e aceite.
Confunde a parte com o todo.
Faz de um pormenor historicamente humilde a chave mestra para compreender um movimento demasiado vasto e complexo.
Ignora tendenciosamente que uma ideia ou uma figura só poderão ser pioneiras se o seu exemplo servir de base a uma evolução que o apreenda, se a antecipação for fundamento da continuação.
Afirmar que Luís de Molina ou de Juan de Mariana são exemplos precursores do pensamento liberal pretendendo estabelecer um fio condutor entre o catolicismo e a liberdade contemporânea, tem, a final, o mesmo valor que defender, patrioteiramente, que os irmãos Wright nunca teriam voado se Bartolomeu de Gusmão não tivesse construído a sua Passarola...