11.11.06

Da ilegalidade do Despacho de Rui Rio

Numa minguada notícia do Expresso, a propósito da eventual ilegalidade do Despacho de Rui Rio que termina com a concessão de subsídios a fundo perdido, diz-se que eu alerto para que «a Lei obriga a apoiar actividades de interesse municipal». A exiguidade da informação e o risco patente de criação de equívocos forçam-me a algumas elucidações. Até porque, liberalismo oblige ...
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Questão legal:

A) A conjugação do art. 20.º/2 g), da Lei nº 159/99, de 14/9 (Transferência das Atribuições e Competências para as Autarquias) com o disposto no art. 64.º/4 b), da Lei nº 169/99, de 18/9 (Competências e Funcionamento dos Municípios) faz com que essa matéria seja um poder-dever funcional que não está na esfera de vontade do órgão administrativo não aplicar, prescindir ou renunciar, atendendo ao Princípio da Legalidade da Competência consagrado no art. 29.º/1 do Código de Procedimento Administrativo - note-se que o nº 2 do mesmo artigo comina com a nulidade todo "... o acto ou contrato que tenha por objecto a renúncia..." de uma competência.
O órgão administrativo pode escolher os modos de concretização desse poder-dever mas nunca é livre de estabelecer e anunciar, através de um acto jurídico,
a vontade de não cumprir aquilo que a Lei lhe impõe como conduta necessária.
Também não pode colher a interpretação que queira retirar do Despacho,
datado de dia 3 de Novembro, um significado de que as matérias em causa são outras que não apenas a «cultura», o «desporto» e as «actividades recreativas ou de carácter social» - isto porque, entre outras razões, o ponto 2 desse Despacho refere expressamente a ressalva das "... situações altamente excepcionais de carácter exclusivamente social que deverão se alvo de análise casuística".
Saliente-se, ainda, que o Despacho foi imediatamente emoldurado com uma série de declarações públicas de cariz explicativo em que, persistentemente, o Dr. Rui Rio fundamentou a decisão na sua vocação pedagógica em «
dar um exemplo para todo o país» e lutar contra a «subsídio-dependência na área da cultura». É pois no quadro normativo que referi que o presente caso se subsume.

B) Mais (e, talvez, pior) - o Despacho de dia 3 de Novembro do presidente da CMP parece-me estar ferido de um vício de falta de competência:
- o art. 65.º/1 da referida Lei nº 169/99 afirma que essa competência da Câmara é indelegável no seu presidente. Sendo assim, o alcance do Despacho assinado solitariamente pelo Dr. Rui Rio fica preso a maiores dificuldades de compreensão legal. Ainda. Corresponde a uma decisão singular do Presidente em matéria que este não pode decidir - só o executivo municipal poderá deliberar nessa rubrica.

Deste modo, julgo existirem os seguintes problemas de legalidade na decisão de Rui Rio:

i) A renúncia expressa à competência legalmente outorgada de apoiar as "... actividades de interesse municipal, de natureza (...) cultural ...", descrita nos art. 20.º/2 g), da Lei nº 159/99, de 14/9; e no disposto no art. 64.º/4 b), da Lei nº 169/99, de 18/9 que configura um abandono inequívoco e público de um poder-dever funcional, violando o Princípio da Legalidade da Competência do art. 29.º/1, do CPA - conduta que o nº 2 do mesmo artigo atinge com a nulidade do acto que a consubstancie;

ii) Um vício de falta de competência para praticar o acto contido no Despacho já que esta matéria está legalmente destinada à cura da Câmara Municipal e não do seu Presidente; e o art. 65.º/1 da Lei nº 169/99, de 18/9, dispõe que essa competência não pode ser delegada para o Presidente. Donde, em caso algum Rui Rio poderia ter praticado o acto contido no seu Despacho de 3/11, por não possuir poderes legais para o fazer.

C) Não está aqui em causa a dimensão política do Despacho de Rui Rio, embora essa vertente também seja bastante discutível para quem constantemente se afirma «de esquerda» e um acérrimo adversário ideológico dos «neo-liberais» [Rui Rio acredita piamente na intervenção pública - PPA Antas; Corte Inglês; alçado (construção em altura); até agora, contraditoriamente, anúncios de preocupação compulsiva com aquele sector vago e indeterminado que é o "Social"].
Essencialmente, estou a descrever a situação legal do Despacho e do seu enquadramento interpretativo nas várias declarações públicas do seu autor.
Mas, a meu ver, a discussão no plano ideológico, ou outro, não pode colidir no real com a legalidade vigente -
um titular de um órgão administrativo tem um dever especial de cumprimento da legalidade, concorde mais ou menos com as implicações ideológicas das normas que tem de aplicar. Pode escolher os meios, seleccionar os comportamentos; mas nunca afirmar, jardinicamente, que não irá cumprir os seus deveres legais.
Nem o direito se deve compadecer com oportunismos políticos travestidos de rigor orçamental ou de lição moralizante para o resto da humanidade.