13.11.06

Intolerância


Francisco de Vitória, o fundador da Escola de Salamanca - mais tarde estendida a Coimbra e Évora -, e Martinho Lutero, o fundador do protestantismo, morreram no mesmo ano - 1546. Um ano antes, tinha-se iniciado o Concílio de Trento. Ironicamente, viriam a ser os países protestantes - e não os países católicos que lhe deram origem - os principais beneficiários do pensamento da Escola de Salamanca e dos fundamentos do liberalismo moderno que ela estabeleceu. ###

Protestando contra a autoridade da Igreja de Roma e a sua legitimidade para ser a intérprete da palavra de Cristo na Terra, os cristãos que, mais tarde, viriam a receber o nome de protestantes, criaram a si próprios um problema. Como ter, então, acesso à palavra de Cristo, agora que já não podia ser por intermediação da Igreja Católica? A resposta dos líderes protestantes não podia ser outra: lendo as Escrituras.

Não surpreende que nos países predominantemente protestantes do Norte da Europa e, mais tarde, nos seus descendentes na América do Norte - EUA e Canadá - as taxas de analfabetismo começassem a declinar rapidamente. Pelo contrário, nos países católicos - os principais eram, na altura, Portugal e Espanha - bem como nos seus descendentes na América Latina, a palavra de Cristo podia continuar a ser conhecida sem necessidade de saber ler. Bastava assistir à missa. Por isso, só tardiamente estes países viriam a libertar-se do analfabetismo.

As Escrituras prestam-se a interpretações diversas e não raro contraditórias. Para os protestantes não bastava, portanto, saber ler. Era necessário inquirir sobre o significado das palavras de Cristo e discutir as suas diferentes interpretações. Pelo contrário, para os católicos só havia uma interpretação possível das palavras de Cristo e uma interpretação oficial - aquela que era veiculada pela Igreja Católica.

Inquirir e discutir: estas são as características essenciais do espírito científico moderno. Não surpreende, por isso, que a ciência tivesse nascido e desenvolvido nos países predominantemente protestantes do Norte da Europa e da América do Norte e que seja, ainda hoje, de lá que vêm, em maioria esmagadora, os Prémios Nobel da ciência. Em comparação, os países predominantemente católicos do Sul da Europa e da América Latina não poderiam senão ficar irremediavelmente para trás e ainda hoje permanecem nessa situação.

Numa altura em que as comunicações eram difíceis, era apenas natural que numa comunidade protestante se desenvolvesse uma certa interpretação das Escrituras enquanto que numa outra comunidade se desenvolvesse uma outra interpretação diferente. Qual das duas interpretações - qual das várias interpretações - era a boa? Esta foi uma questão importante para as comunidades protestantes do Norte da Europa e, mais tarde, da América do Norte. Em contraste, não era uma questão sequer nos países católicos do Sul da Europa e, mais tarde, naqueles que deles descenderam na América Latina. Nestes países, não havia lugar a mais do que uma interpretação das Escrituras e essa era a interpretação oficial da Igreja Católica.

Os líderes religiosos protestantes resolveram a questão de forma hábil, invocando as próprias Escrituras: "Pois onde estiverem reunidos, em Meu nome, dois ou três, Eu estarei no meio deles" (Mateus, 18:20). Por outras palavras, Cristo abençoa todas as interpretações das Suas palavras desde que elas sejam feitas em Seu nome. Esta tolerância pelas opiniões dos outros e a capacidade para conviver com opiniões diferentes é a essência do espírito democrático moderno.

Não surpreende que a democracia tenha nascido e florescido nos países predominantemente protestantes do Norte da Europa e da América do Norte. Pelo contrário, nos países predominantemente católicos do Sul da Europa e nos seus descendentes na América Latina a Igreja ensinava que havia uma única verdade cristã com exclusão de todas as outras. As populações destes países não podiam senão permaner intolerantes e propensas a regimes políticos autoritários.

E, mesmo quando, já tardiamente, estes países se abriram à democracia por mero efeito de imitação, o espírito de intolerância (e a propensão ao autoritarismo), cultivado durante séculos, não iria desaparecer de um dia para o outro. Ele está aí a conviver connosco todos os dias, em todos os lugares, tornando a democracia nestes países uma experiência eternamente precária.