1. Em 1994, Norberto Bobbio publicou um pequeno mas influente livro («Destra e sinistra. Ragioni e significati di una distinzione politica») sobre os conceitos de esquerda e de direita, no qual reflectiu sobre a actualidade, a utilidade e, sobretudo, a capacidade de sobrevivência daquela dicotomia aos mais de duzentos anos que já então levava sobre a Revolução Francesa, donde seria originária.
Considerando-os «conceitos relativos», mais como lugares geográficos do «espaço político» do que como «conceitos substantivos ou ontológicos», Bobbio elimina, uma a uma, as objecções à sua presuntiva inutilidade. Afirmando a distinção actual e correspondente à realidade, torna-se importante encontrar a linha divisora entre os dois espaços, um critério separador, aquilo que simultaneamente une e identifica a direita e a esquerda, e as consegue separar como realidades diferenciadas. Postas de lado ficam as dicotomias «explicativas» tradicionais: revolução/contra-revolução, ateísmo/religiosidade, inovação/tradição, democracia/ditadura, liberdade/autoritarismo. A História dá-nos modelos práticos e teóricos de esquerdas e direitas que colhem nas categorias de ambos os termos destas classificações, pelo que elas não podem ser erigidas a critério diferenciador.###
2. O mesmo já se não passará, segundo o autor italiano, com a dicotomia igualdade/desigualdade. Embora sabendo de antemão que esses conceitos não são, eles também, realidades absolutas, porque a igualdade não exclui a desigualdade e esta não poderá nunca eliminar por inteiro aquela, Bobbio distingue os dois campos deste modo: «podem ser correctamente chamados igualitários aqueles que, ainda que não ignorando que os homens são tão iguais quanto desiguais, apreciam de modo especial e consideram mais importante para a boa convivência aquilo que os une; podem ser chamados de inigualitários, ao contrário, aqueles que, partindo do mesmo juízo de facto, apreciam e consideram mais importante, para fundar uma boa convivência, a diversidade». Por outro lado, quanto ao modo de intervenção política e às prioridades de cada um destes «lugares», afirma: «O igualitário parte da convicção de que a maior parte das desigualdades que o indignam, e que gostaria de fazer desaparecer, são sociais e, enquanto tal, elimináveis; o inigualitário, ao contrário, parte da convicção oposta, de que as desigualdades são naturais e, enquanto tal, inelimináveis» (...) «Disso decorre que quando se atribui à esquerda uma maior sensibilidade para diminuir as desigualdades não se deseja dizer que ela pretende eliminar todas as desigualdades ou que a direita pretende conservá-las todas, mas no máximo que a primeira é mais igualitária e a segunda é mais inigualitária». A esquerda seria, por excelência, o campo da defesa da igualdade, enquanto à direita pertenceria a defesa da desigualdade. Note-se que, quer num caso quer no outro, o autor pretende tratarem-se mais de posições ontológicas e de convicção sobre o melhor funcionamento da sociedade, do que da defesa de posições de classe ou de estamento social. Pelo menos, neste particular aspecto, o esquerdismo reclamado de Bobbio não lhe retirou lucidez nem diminuiu a sua honestidade intelectual.
3. Contudo, e de certo modo, Bobbio acaba por reconhecer alguns dos critérios definidores que anteriormente invalidara. Ora, se a direita admite que o reconhecimento da desigualdade é a melhor forma de compreender a sociedade, enquanto que, pelo contrário, a esquerda não se conforma com ela e pretende combatê-la em nome da máxima igualdade possível entre os cidadãos, isso equivale a afirmar que a primeira é conservadora (ou tradicionalista), enquanto que a segunda é inovadora e inconformista. Sensu lato, a esquerda seria revolucionária e a direita contra-revolucionária, porque a primeira quer romper com as limitações socialmente impostas, e a segunda prefere mantê-las. Bem vistas as coisas, o critério de Bobbio não se afasta assim tanto dos estigmas ideológicos, que ele pretendeu ultrapassar.
4. Como, também, não consegue inserir, neste seu maniqueísmo, o liberalismo, entendido este como liberalismo clássico e não como o soi-disant «liberalismo» voluntarista e racionalista de origem francesa. De facto, Bobbio evita qualificar o liberalismo como uma ideologia de direita, embora não seja, também, no seu critério diferenciador daquelas duas categorias, uma ideologia de esquerda. Ele entende que o liberalismo é, tal como a esquerda, igualitarista, embora se trate de um «igualitarismo mínimo» que se prende «apenas» com a «igualdade diante da lei, que implica unicamente o dever por parte do juiz de aplicar imparcialmente as leis». Mas ele será, por outro lado, de direita, na medida em que «a liberdade de mercado gera desigualdades» e o liberalismo não só se conforma, como se congratula, com isso.
5. Nestas asserções de Bobbio existem alguma injustiça e umas tantas incorrecções. Injustiça, porque ao dizer que o liberalismo aceita um «igualitarismo mínimo» consubstanciado no princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, está a retirar igual convicção à direita democrática, o que está longe de corresponder à verdade. Como, por outro lado, esse princípio não se reduz apenas ao tratamento que a aplicação da lei deve ter, mas, sobretudo, na própria forma como ela é enunciada pelo legislador: para o liberalismo a igualdade perante a lei inicia-se no próprio momento legislativo, em que o legislador, isto é, o Estado, não poderá estatuir senão normas jurídicas gerais e abstractas. O que, mutatis mutandis, permanecendo fiéis ao raciocínio de Bobbio, permite uma conclusão perversa: a esquerda igualitária trata de modo desigual os cidadãos, violando, assim, o princípio da legalidade em função de um resultado nivelador que pretende atingir.
Ora, esta visão de Bobbio em torno dos «lugares» políticos esquerda e direita acaba por perpetuar o estigma habitual da luta de classes marxista. Em última análise, se aprofundássemos um pouco mais o raciocínio, acabaríamos nas categorias tradicionais dos «privilegiados», defensores dos seus privilégios, vs. os «oprimidos», desejosos de mudanças niveladoras: a direita aceitaria a desigualdade e pretende mantê-la, quaisquer que sejam os fundamentos utilizados para isso, enquanto que a esquerda não se conformaria com a desigualdade e pretende transformar o mundo ou, pelo menos, esse mundo, isto é, aquele em que vivemos.
6. Mesmo admitindo que a direita é aquilo que Bobbio diz dela, e que a esquerda continua a ser o que sempre foi, existe um hiato por preencher, ao qual apenas o liberalismo conseguiu dar resposta. É que entre o espaço da estratificação social ordenadora e o da luta de classes, e entre aquele que vai do intervencionismo socialista igualitarizante ao intervencionismo conservador, existe um espaço imenso para o princípio da cooperação entre homens livres. A ideia é simples: numa sociedade livre e tendencialmente desintervencionada, o espaço de liberdade individual é preenchido pela livre cooperação entre os indivíduos, tendo em vista a maximização das suas condições de vida, da sua liberdade e da sua propriedade. Os liberais acreditam que entre seres racionais a composição directa de interesses é possível e contribui não para uma igualdade abstracta (que, de resto, apenas existe enquanto conceito teórico), mas para a realização individual máxima de cada um.
O princípio da cooperação social natural e espontânea - a célebre «mão invisível» - distingue, de facto, o liberalismo da esquerda voluntarista que pretende transformar a sociedade a partir da intervenção do Estado para alcançar a «igualdade», e da direita conservadora, que vê a sociedade como um «status» que é necessário preservar pela actuação dos poderes públicos. Nesta visão das coisas, somente, em parte, tributária de Bobbio, o liberalismo não está nem à esquerda nem à direita. Talvez algures, a meio, um pouco acima de ambas.
Considerando-os «conceitos relativos», mais como lugares geográficos do «espaço político» do que como «conceitos substantivos ou ontológicos», Bobbio elimina, uma a uma, as objecções à sua presuntiva inutilidade. Afirmando a distinção actual e correspondente à realidade, torna-se importante encontrar a linha divisora entre os dois espaços, um critério separador, aquilo que simultaneamente une e identifica a direita e a esquerda, e as consegue separar como realidades diferenciadas. Postas de lado ficam as dicotomias «explicativas» tradicionais: revolução/contra-revolução, ateísmo/religiosidade, inovação/tradição, democracia/ditadura, liberdade/autoritarismo. A História dá-nos modelos práticos e teóricos de esquerdas e direitas que colhem nas categorias de ambos os termos destas classificações, pelo que elas não podem ser erigidas a critério diferenciador.###
2. O mesmo já se não passará, segundo o autor italiano, com a dicotomia igualdade/desigualdade. Embora sabendo de antemão que esses conceitos não são, eles também, realidades absolutas, porque a igualdade não exclui a desigualdade e esta não poderá nunca eliminar por inteiro aquela, Bobbio distingue os dois campos deste modo: «podem ser correctamente chamados igualitários aqueles que, ainda que não ignorando que os homens são tão iguais quanto desiguais, apreciam de modo especial e consideram mais importante para a boa convivência aquilo que os une; podem ser chamados de inigualitários, ao contrário, aqueles que, partindo do mesmo juízo de facto, apreciam e consideram mais importante, para fundar uma boa convivência, a diversidade». Por outro lado, quanto ao modo de intervenção política e às prioridades de cada um destes «lugares», afirma: «O igualitário parte da convicção de que a maior parte das desigualdades que o indignam, e que gostaria de fazer desaparecer, são sociais e, enquanto tal, elimináveis; o inigualitário, ao contrário, parte da convicção oposta, de que as desigualdades são naturais e, enquanto tal, inelimináveis» (...) «Disso decorre que quando se atribui à esquerda uma maior sensibilidade para diminuir as desigualdades não se deseja dizer que ela pretende eliminar todas as desigualdades ou que a direita pretende conservá-las todas, mas no máximo que a primeira é mais igualitária e a segunda é mais inigualitária». A esquerda seria, por excelência, o campo da defesa da igualdade, enquanto à direita pertenceria a defesa da desigualdade. Note-se que, quer num caso quer no outro, o autor pretende tratarem-se mais de posições ontológicas e de convicção sobre o melhor funcionamento da sociedade, do que da defesa de posições de classe ou de estamento social. Pelo menos, neste particular aspecto, o esquerdismo reclamado de Bobbio não lhe retirou lucidez nem diminuiu a sua honestidade intelectual.
3. Contudo, e de certo modo, Bobbio acaba por reconhecer alguns dos critérios definidores que anteriormente invalidara. Ora, se a direita admite que o reconhecimento da desigualdade é a melhor forma de compreender a sociedade, enquanto que, pelo contrário, a esquerda não se conforma com ela e pretende combatê-la em nome da máxima igualdade possível entre os cidadãos, isso equivale a afirmar que a primeira é conservadora (ou tradicionalista), enquanto que a segunda é inovadora e inconformista. Sensu lato, a esquerda seria revolucionária e a direita contra-revolucionária, porque a primeira quer romper com as limitações socialmente impostas, e a segunda prefere mantê-las. Bem vistas as coisas, o critério de Bobbio não se afasta assim tanto dos estigmas ideológicos, que ele pretendeu ultrapassar.
4. Como, também, não consegue inserir, neste seu maniqueísmo, o liberalismo, entendido este como liberalismo clássico e não como o soi-disant «liberalismo» voluntarista e racionalista de origem francesa. De facto, Bobbio evita qualificar o liberalismo como uma ideologia de direita, embora não seja, também, no seu critério diferenciador daquelas duas categorias, uma ideologia de esquerda. Ele entende que o liberalismo é, tal como a esquerda, igualitarista, embora se trate de um «igualitarismo mínimo» que se prende «apenas» com a «igualdade diante da lei, que implica unicamente o dever por parte do juiz de aplicar imparcialmente as leis». Mas ele será, por outro lado, de direita, na medida em que «a liberdade de mercado gera desigualdades» e o liberalismo não só se conforma, como se congratula, com isso.
5. Nestas asserções de Bobbio existem alguma injustiça e umas tantas incorrecções. Injustiça, porque ao dizer que o liberalismo aceita um «igualitarismo mínimo» consubstanciado no princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, está a retirar igual convicção à direita democrática, o que está longe de corresponder à verdade. Como, por outro lado, esse princípio não se reduz apenas ao tratamento que a aplicação da lei deve ter, mas, sobretudo, na própria forma como ela é enunciada pelo legislador: para o liberalismo a igualdade perante a lei inicia-se no próprio momento legislativo, em que o legislador, isto é, o Estado, não poderá estatuir senão normas jurídicas gerais e abstractas. O que, mutatis mutandis, permanecendo fiéis ao raciocínio de Bobbio, permite uma conclusão perversa: a esquerda igualitária trata de modo desigual os cidadãos, violando, assim, o princípio da legalidade em função de um resultado nivelador que pretende atingir.
Ora, esta visão de Bobbio em torno dos «lugares» políticos esquerda e direita acaba por perpetuar o estigma habitual da luta de classes marxista. Em última análise, se aprofundássemos um pouco mais o raciocínio, acabaríamos nas categorias tradicionais dos «privilegiados», defensores dos seus privilégios, vs. os «oprimidos», desejosos de mudanças niveladoras: a direita aceitaria a desigualdade e pretende mantê-la, quaisquer que sejam os fundamentos utilizados para isso, enquanto que a esquerda não se conformaria com a desigualdade e pretende transformar o mundo ou, pelo menos, esse mundo, isto é, aquele em que vivemos.
6. Mesmo admitindo que a direita é aquilo que Bobbio diz dela, e que a esquerda continua a ser o que sempre foi, existe um hiato por preencher, ao qual apenas o liberalismo conseguiu dar resposta. É que entre o espaço da estratificação social ordenadora e o da luta de classes, e entre aquele que vai do intervencionismo socialista igualitarizante ao intervencionismo conservador, existe um espaço imenso para o princípio da cooperação entre homens livres. A ideia é simples: numa sociedade livre e tendencialmente desintervencionada, o espaço de liberdade individual é preenchido pela livre cooperação entre os indivíduos, tendo em vista a maximização das suas condições de vida, da sua liberdade e da sua propriedade. Os liberais acreditam que entre seres racionais a composição directa de interesses é possível e contribui não para uma igualdade abstracta (que, de resto, apenas existe enquanto conceito teórico), mas para a realização individual máxima de cada um.
O princípio da cooperação social natural e espontânea - a célebre «mão invisível» - distingue, de facto, o liberalismo da esquerda voluntarista que pretende transformar a sociedade a partir da intervenção do Estado para alcançar a «igualdade», e da direita conservadora, que vê a sociedade como um «status» que é necessário preservar pela actuação dos poderes públicos. Nesta visão das coisas, somente, em parte, tributária de Bobbio, o liberalismo não está nem à esquerda nem à direita. Talvez algures, a meio, um pouco acima de ambas.